Os tempos eram difíceis, como estes que vivemos: o Brasil vivia racionamento de energia, e os jogos de futebol do domingo precisavam começar às 15h, para que refletores não precisassem ser acesos. Particularmente o domingo 27 de maio de 2001 estava iluminado, um sol daqueles que faz o carioca lembrar que só temos mesmo duas estações (verão e inferno). A primavera parecia brutal. Em campo, Flamengo e Vasco decidiam mais um campeonato, em jogo o quarto tricampeonato estadual da história rubro-negra (o tri-tri havia sido naquele ano de 1979, quando jogamos – e vencemos – dois estaduais).
Foi, como sabemos, o grande gol de pelo menos três gerações de rubro-negros. Os que ainda eram pequenos demais para entender certamente o veneram. Os que viveram apenas os tempos pós-Zico. E os que estavam despertando para o rubro-negrismo, naquela mágica idade de 12 ou 13 anos, que nos faz pensar o quão injusto é ter 12 anos apenas uma vez na vida. Aquela idade em que os pais ainda aguentam nos levantar para ver um ataque do Flamengo na arquibancada, aquela idade incrível na qual acreditamos ser possível viver para sempre dentro de um gol.
Este cara de 13 anos que pulou na hora em que a bola, inacreditavelmente, entrou no ângulo de Helton, atirada “com as mãos e a fúria” pelo sérvio, aos 43 do segundo tempo, está vivendo até hoje lá dentro. Ele lembra do Maracanã (um outro Maracanã, um outro Flamengo) explodindo, se lembra do pai o abraçando, feliz, rindo, berrando. Se o pai dele ainda está por aqui, esse cara hoje tem 30 anos, talvez esteja casado, visita o pai e assiste os jogos ao lado dele, reclama desse Flamengo que vemos hoje, e os dois sempre se lembram do gol de Petkovic. Talvez o pai dele já tenha partido. Aí, nesse caso, tal e qual naquele filme “About time” (veja com uma caixa de Kleenex), todo 27 de maio o menino de 13 anos se encontra com o pai na arquibancada e revive tudo: a angústia da torcida do Vasco já comemorando, a perda virtual do tricampeonato, a falta em Edílson, a distância muito longa, mas Petkovic partindo para a bola e tudo desabando. Um momento poderoso, uma espécie de choque de meteoros, uma explosão de energia incalculável.
E no entanto, é o mesmo Flamengo. Você acredita? Eu às vezes duvido. Mas esse Flamengo desse momento mágico é o Flamengo de Henrique Dourado, Pará, Arão. Há apenas um Flamengo, e a bipolaridade dele nos confunde, nos angustia e convida sempre ao radicalismo, à “escolha de um dos lados”. Não há lados: há o Flamengo.
Por que digo isso, depois de uma recordação tão monumental como a do golaço de Petkovic?
Me preocupa o maniqueísmo que surge dessa nossa bipolaridade, dessa capacidade que esse time tem de ser a maior alegria de nossas vidas em um momento e também a coisa mais FDP no outro. Disso surgem conceitos que só podem se mostrar daninhos. Me vem à mente Edmund Burke, autor de “Reflexões sobre a revolução francesa”, um dos livros mais espetaculares que já tive o prazer de ler. Talvez os senhores consideram a comparação inapropriada, e eu mesmo me sinto desconfortável em trazer para a discussão uma revolução que resultou na execução sumária de mais de 70 mil pessoas. Mas é que a Revolução Francesa criticada por Burke é de importância capital na história da humanidade, é ela que criou o mindset segundo o qual não há outra forma de resolver questões da sobrevivência a não ser pela via extrema. Burke, aliás, criticou a Revolução antes do período de terror ter início – a revolução em si foi em 1792 mas o reinado de terror começou em 1793. Pessoas eram decapitadas em nome de uma melhor distribuição de renda. Então tá. Burke já fazia suas críticas a Rosseau no livro lançado dois anos antes da tomada do poder.
A questão é que Burke defendia algo que falta hoje ao Flamengo, a muitos de seus torcedores e a uma gigantesca parcela da mídia: a Imaginação Moral.
É uma variante de racionalismo que leva o ser humano à intuir o que é minimamente razoável. Graças a isso, era possível a um ser humano, suponhamos, mais pobre, ter piedade de um nobre sendo torturado até a morte – o que é normal e desejável, bem como a reciprocidade. Para Burke, a Revolução Francesa só poderia prosperar se a Imaginação Moral fosse destruída. E é neste ponto que quero chegar quando peço que seja usada a Imaginação Moral na hora de analisar a partida entre Flamengo e River Plate, em Buenos Aires, que terminou 0 x 0.
Sério: não me preocupa o possível resultado ruim contra o Atlético Mineiro. Me preocupa a reação depois do jogo de quarta, pois vejo ali a caminhada para um festim de radicalismos bobos e narrativas que não mais funcionam.
A primeira dessas narrativas é “azul”, e atroz: o Flamengo foi segundo do grupo “mas invicto”. Uma bobagem sem tamanho, claro – mas é ano eleitoral e quem vai votar nos azuis quer mesmo é passar pano. O único brasileiro a se classificar em segundo foi o Flamengo, o que é assaz incômodo. A melhor gestão da história do clube não conseguiu, nos dois mandatos, ter um futebol à altura da marca Flamengo, este é o único fato, e é preciso lidar com ele, em vez de ficarmos tentando enxergar melhorias no Renê ou qualidades no pênalti cobrado pelo Dourado. O Flamengo começou o campeonato brasileiro com técnico interino, e ameaça efetivá-lo, o que é algo inacreditável. Estamos indo para a fase de mata-mata da Libertadores com Rodinei e Renê nas laterais, fora Trauco, que até hoje não sei em que posição joga.
Passado isso, o que assisti durante o jogo e principalmente depois foi um festival de narrativas com as quais não posso concordar de forma alguma – o que me leva à suposta condição de “em cima do muro”. Um engano comum, nestes tempos de polarização em praticamente tudo (até Bolacha/Biscoito). Burke, quando critica a queda da Imaginação Moral francesa, parece elogiar de certa forma a Revolução Sem Sangue, ocorrida na Inglaterra no século 17. Ali, se fez uma revolução silenciosa, gradativa, baseada no diálogo e na reivindicação, nos pesos e contrapesos de toda uma sociedade pronta para essa experiência. O Flamengo, seguramente muito maior que a Inglaterra ou qualquer outro país no mundo, passa sim por uma Revolução sem Sangue, passando de clube depauperado para uma instituição sólida e pronta para viver mais cem anos de prosperidade.
Ah, mas e o futebol?
Precisamos da Imaginação Moral. Para entender que empatar em zero a zero com o River Plate no Monumental de Nuñez está perfeitamente dentro das nossas possibilidades, na verdade até acima delas. “Ah, mas Flamengo tem que jogar para ganhar”. Eu concordo: acho que os técnicos deveriam ter apertado nos 15 minutos finais, jogado o time mais para a frente, já que perder de cinco ou empatar seria basicamente a mesma coisa. Quem tinha algo a perder ali era o River, ora essa.
Mas eu discordo veementemente da mesa redonda no SportTV comandada pelo ex-jogador Roger, na qual a única preocupação pareceu ser a de achincalhar a performance rubro-negra como se o time tivesse levado de cinco a zero do ASA de Arapiraca. Não houve um comentário sequer sobre o pênalti absurdo sofrido por Rhodolfo, sobre a entrada criminosa de Pérez em Paquetá punida com um cartão amarelo (quando deveria ter sido o vermelho direto), nada sobre a violência perpetrada pelo ignóbil Maidana. Pareceram ter esquecido que o pavoroso Dourado teve chance de marcar em cima da linha mas não conseguiu esticar a perna, não repararam que Vinícius Júnior salvou um gol nosso, nem mesmo consideraram que Paquetá poderia ter caprichado mais naquela cabeçada no fim do jogo. Enfim, em função de o Flamengo ter tomado a decisão de não perder o jogo, algo perfeitamente dentro do que o futebol rubro-negro é hoje, a reação de todos foi de um prurido quase urticário. Ora, ora, quem está ali não é Edílson, quem está ali não é Dejan Petkovic. É apenas o mesmo Flamengo de sempre, aquele que conhecemos e que a cada dia encanta mais meninos de 12 e 13 anos.
Eu, do alto dos meus cinquenta anos, fiquei esperando por um gol de Zico, ou talvez uma jogada de Peu pela direita, um cruzamente de Leandro. Mas não: era Rodinei, era René, era Jean Lucas. Aliás, nenhum dos senhores cronistas se dignou a comentar: o Flamengo entrou em campo pela Libertadores contra o gigante River no Monumental de Nuñez com um meio-campo de 17 anos – e que jogou de forma honrada.
Você deve estar pensando em como associar o gol do Pet a esta quarta-feira de pasmaceira diante da televisão; a única coisa que posso dizer é que nos dois casos é preciso refletir sob o ponto de vista da Imaginação Moral: o Flamengo é mais importante do que qualquer coisa que falem ou pensem dele, e por isso atropelou o Vasco em 2001 e não foi goleado, againstallodds, pelo River Plate em 2018. É o mesmo Flamengo, não se enganem. Só existe um Flamengo, e é este que você precisa aprender a preservar, mudando, revolucionando, sem mortos e feridos, mas na base da construção. Partir para cima do River Plate em Buenos Aires é algo jacobino demais, e poderia resultar em derramamento de NOSSO sangue. Nos arriscamos sinceramente a ganhar o jogo, embora a mídia tenha resolvido nos condenar por uma suposta postura covarde. Ora: é o mesmo Flamengo, mas não os mesmos jogadores. O que o Flamengo tem de “mesmo” é a capacidade de entender o espírito de seu tempo e suas limitações – quando ele não usa essa capacidade, apanha horrivelmente.
As gralhas e hienas que exibiam seus dentes brancos a chamar o Flamengo de “covarde” por não ter se entregue, contra o River Plate, a uma louca correria tendo um moleque de 17 anos no meio e outro no ataque, estas gralhas e hienas seriam as mesmas que festejariam uma goleada humilhante, são as mesmas que certamente torceram para o Emelec nos tirar na primeira fase, são as mesmas gralhas e hienas que adoram ver o Flamengo ser atropelado. Não aconteceu. Tal e qual moleques no pátio da escola no recreio, ficam torcendo para que o Flamengo parta para cima, a fim de ver o espetáculo no qual eles são os únicos palhaços.
O Flamengo está efetivamente longe de ter um ano bom, não creio, particularmente, em triunfo na Libertadores e no Brasileiro. Mas a minha Imaginação Moral, tal e qual o viés cristão de Burke, me compele a seguir defendendo meu posto até o fim. Parabéns, sim, aos guerreiros rubro-negros na fria noite de Buenos Aires. Acima de tudo, de resultado, de jogo, de vitória ou empate, o que aconteceu quarta-feira foi um claro choque de realidade, sem narrativas, sem invencionices. O Flamengo jogou o real soccer, a vida de verdade, o que se pode fazer e o que se pode esperar. O resto é mesa redonda de bola quadrada. Take me tothe River, men.
Imagem destacada nos posts e nas redes sociais: Divulgação
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Gustavo de Almeida é jornalista desde 1993, com atuação nas áreas de Política, Cidades, Segurança Pública e Esportes. É formado em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense. Foi editor de Cidade do Jornal do Brasil, onde ganhou os prêmios Ibero-Americano de Imprensa Unicef/Agência EFE (2005) e Prêmio IGE da Fundação Lehmann (2006). Passou pela revista ISTOÉ, pelo jornal esportivo LANCE! e também pelos diários populares O DIA, A Notícia e EXTRA. Trabalhou como assessor de imprensa em campanhas de à Prefeitura do Rio e em duas campanhas para presidente de clubes de futebol. É pós-graduado (MBA) em Marketing e Comunicação Empresarial pela Universidade Veiga de Almeida. Atualmente, escreve livros como ghost-writer e faz consultorias da área de política, além de estar trabalhando em um roteiro de cinema.
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