Agora que está feito, que o Flamengo calou o Roberto Meléndez, os profetas do acontecido simplificam o feito e o reduzem a uma estratégia. Rueda fechou o time, dizem, e gente que ridicularizava o Vizeu – que erro ter dispensado o Damião, diziam – e que nem lembrava da existência de César oferecem explicações racionais para o Flamengo finalista.
Calem-se. Não há nada de racional na classificação do Flamengo na Barranquilla de las brujas, de las cabezonas, de la Novia de Puerto Colombia y de las Brujas del Jardín Botánico de la carrera 14, en el sur de Barranquilla. A cidade quente, úmida e atormentada por fantasmas como el niño en el cemitério, la monja en el hospital y el caballo galopante ganhou mais um mito fantasmagórico que assombrará as madrugadas vazias do Roberto Melendéz, espectros rubro-negros que haviam sido enterrados vivos antes da peleja de 30 de novembro de 2017 e que ressuscitaram para assombrar o Junior e seus torcedores.
Não há nada racional em um Flamengo esquartejado por seus dirigentes, a ponto de se ver sem goleiro para um jogo decisivo, e que ainda cogitava expor Alex Muralha a mais uma execração pública, por mais o goleiro mostrasse de todos os modos que está sem condições de mover uma caixa de fósforo debaixo das traves de uma partida de futebol de botão.
O Flamengo, esfacelado por quem deveria dele cuidar, ressurgiu de suas vísceras expostas. As mesmas vísceras que deram à luz Juan, César, Paquetá e Vizeu. O Flamengo foi tão vilipendiado que só sobrou a última matéria que se esconde sob os escombros, e dali Vizeu saiu para uma arrancada à velha maneira flamenga (RODRIGUES, Nelson), dali saiu Paquetá para romper o letargismo de outros do time, dali saiu César para espalmar o pênalti de Ymmi Chará e dali saiu, soberanamente, Juan dos Santos.
Salvam-se, além das crias da cantera, os colombianos Rueda e Cuéllar, e o zagueiro Rodolpho, este o padrinho da ressurreição de Vizeu, todos dissonantes do coro de conformados criado no Flamengo por seus comandantes com cara de tédio e frases feitas.
Em 1984, ali perto do Roberto Meléndez, no velho Romelio Martinez, o Flamengo já havia assombrado os assombros de Barranquilla, com arrancadas de Edmar, com Fillol atacando um pênalti no último lance, mas era um Flamengo em si, à flor da pele, verdadeiramente Flamengo e ainda com mundialistas na cancha. Este Flamengo da noite de ontem precisou vencer primeiro os demônios internos alimentados a pão de ló por dirigentes prepotentes, e só venceu porque buscou na rapa do tacho os filhos das vísceras, Juan, César, Paquetá e Vizeu.
E com as vísceras expostas haveremos de enfrentar o Independiente Rey de Copas, e iremos de peito aberto, olho no olho, porque por mais que tentem nos tirar a fé que guia nossos passos há 122 anos, não nos podem arrancar as vísceras, e se conquistarmos esta Copa, que vale menos pelo que bota em disputa e mais porque é nela que podemos nos reencontrar, teremos escrito, contra tudo e contra todos, parafraseando Galeano, a história das nossas vísceras expostas na América Latina.
Mauricio Neves é autor do livro “1981 – O primeiro ano do resto de nossas vidas” e escreve no MRN todas as sextas-feiras. Siga-o no Twitter: @flapravaler
Imagem usada no post e nas redes sociais: Gilvan de Souza / Flamengo