Com o Flamengo nunca é fácil, mas dessa vez ele se superou. A derrota para o Santos na Ilha do Urubu graças a incompreensível e indesculpável insistência do departamento de futebol em se apostar num goleiro que havia falhado em todas as vezes que foi exigido durante a temporada — e por todas, me refiro a literalmente todas mesmo —, fez com que se criasse para o fim de ano rubro-negro uma configuração conhecida como Tempestade Perfeita, quando algo que já se apresenta muito difícil se torna especialmente desesperador por conta de uma combinação improvável de fatores.
A vaga na Libertadores que poderia ter sido carimbada com uma simples vitória em casa contra um adversário pouco motivado no domingo passado, se desenhou uma epopeia digna de Herman Melville.
Pelo Brasileirão, todos os adversários colaram na nossa rabeta. E mesmo que tenhamos a teórica vantagem de dependermos apenas de nós, enfrentaremos o Vitória na Bahia, “suando sangue”, como eles mesmo prometeram, para escapar do rebaixamento. Uma pedreira. Enquanto isso, todos os nossos adversários pelas vagas que restam — isso mesmo, todos — terão compromissos decisivos infinitamente mais tranquilos contra adversários se não mortos, praticamente desmotivados a apresentar grande resistência.
Na outra frente, pela Copa Sul-Americana, nos víamos prestes a encarar o time do Junior em Barranquilla, onde o clima era propício a mais uma vacilada flamenga daquelas que nos acostumamos a ver acontecer diversas vezes nos últimos anos, inclusive nessa Libertadores mesmo.
Mas é na tormenta brutal que surgem as lendas.
As (novas) duas falhas de Muralha — isso mesmo, duas — no mesmo jogo, não deixaram alternativa ao nosso treinador que não sacá-lo do time, mesmo que fosse para apostar em um jovem arqueiro com quase nenhuma experiência internacional, que estava há dois anos sem disputar uma partida profissional e que era atualmente a quarta opção em nosso elenco.
Ouvindo assim, parece loucura. No entanto, Nietzsche — o mitológico filósofo alemão — nos ensinou que existe um pouco de loucura no amor, mas há um pouco de razão na loucura. Nós que amamos esse clube incondicionalmente apesar de tudo que ele nos faz passar, no fundo sabíamos que, contra todas as expectativas, essa mudança revelaria um novo herói.
Ave, César.
O garoto que em 2011 brilhou na conquista da Copinha se mostrou predestinado. Fechou o gol, enfrentou a desconfiança, derrotou a falta de ritmo. O pênalti que agarrou no segundo tempo selando a derrocada moral do adversário em um momento que eles ensaiaram complicar a parada, foi a coroação merecida de uma noite brilhante.
Dele. Não do time.
Estou dizendo que o Flamengo jogou mal? Não. Muito pelo contrário. Mas a partida em geral foi um teste de esforço cardíaco em nível de fundista olímpico. O Flamengo foi sério. O Flamengo competiu. O Flamengo fez o que o Rueda quer. Administrou espaços e soube ser decisivo quando teve a oportunidade. Inclusive as substituições de nosso entrenador, que podem ter arrepiado alguns, foram adequadas. Resultaram.
Especial mesmo foi o fato que a classificação teve a assinatura da nossa base, representada — além do renascimento de César — no oportunismo de Vizeu, na raça talentosa de Paquetá e no veterano Juan, um deus dentro de campo, um ser que pratica algum esporte diferente dos outros jogadores. O que esse cara monstra não é futebol, é a evolução do jogo.
Apesar da euforia com o resultado, nada está ganho. Absolutamente nada.
A decisão que começa quarta-feira na Argentina é contra o Independiente, simplesmente o maior ganhador da Libertadores. Podem não viver seus melhores dias, assim como nós, mas a camisa pesa, assim como a nossa. Será ainda mais arrepiante.
A configuração meteorológica segue assustadora e tudo pode acontecer.
Faltam três jogos nessa temporada que não nos deu trégua um segundo. Sinceramente, não me lembro de outra parecida.
Podemos terminar com glória, título inédito e histórico e um horizonte de novas conquistas internacionais a caminho.
Podemos terminar sem nada, nenhum objetivo alcançado, com uma série de decepções enfileiradas e traumas a tratar.
Sigo com Nietzsche e mantenho minha loucura apaixonada de afirmar que ganharemos essa taça continental. Ela vem mostrando ter um pouco de razão.
Pedro Henrique Neschling nasceu no Rio de Janeiro, em 1982, já com uma camisa do Flamengo pendurada na porta do quarto na maternidade. Desde que estreou profissionalmente em 2001, alterna-se com sucesso nas funções de ator, diretor, roteirista e dramaturgo em peças, filmes, novelas e seriados. É autor do romance “Gigantes” (Editora Paralela/Companhia das Letras – 2015). Siga-o no Twitter: @pedroneschling
Imagens destacadas no post e nas redes sociais: Gilvan de Souza / Flamengo