Era outro Maracanã, assim como era outro Campeonato Carioca.
Mas ainda assim impressiona o dado de que mais, bem mais de 170 mil pessoas tenham comparecido ao velho Maior do Mundo naquela tarde de domingo, 4 de abril de 1976, para assistir a um Flamengo x Vasco que nem era decisivo: valia apenas pela sexta rodada (eram 14) da Taça Guanabara. Um clássico de meio de turno, como esse que será jogado neste sábado, e que tinha tudo para ser morno e ser esquecido com o tempo. Mas entrou para a história do Clássico dos Milhões, fazendo realmente jus ao apelido do confronto.
Era também outro calendário: o Campeonato Carioca daquele ano – cuja novidade era a participação, como convidados, da dupla campista Americano e Goytacaz e do recém-fundado Volta Redonda – começou em 13 de março e, com algumas paralisações ao longo da disputa, tinha previsão para terminar no fim de agosto. Mas só apontou seu vencedor em 3 de outubro, já com o Brasileiro em pleno andamento. Antes de seu início, os clubes passaram quase dois meses em pré-temporada, treinando e excursionando. O Vasco, por exemplo, andou pelo interior do estado do Rio, pelo Espírito Santo, pelo Nordeste, por São Paulo e Santa Catarina, além de enfrentar, também amistosamente, o Botafogo e o America.
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O Flamengo, que no fim de 1975 já havia disputado um torneio em Jundiaí (o qual conquistou, vencendo o Grêmio e o Paulista local) e um amistoso com a Portuguesa Santista em Santos, começou aquela nova temporada na Bahia, seguindo para São Paulo e de lá para Brasília. Em fevereiro, passou boa parte do mês na região sul, jogando em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Na volta ao Rio, fez um amistoso contra o Vila Nova de Goiás na Gávea que valeu como jogo de despedida para o eterno “motorzinho” Liminha, e logo em seguida impôs uma célebre goleada à chamada “Máquina” do Fluminense com quatro gols de Zico. Houve ainda um último jogo, contra a Desportiva no Espírito Santo, antes da estreia no Estadual.
Esta extensa maratona de amistosos, somada às primeiras rodadas do Campeonato Carioca, foram dando liga a um bom time rubro-negro, dirigido pelo gaúcho Carlos Froner, de perfil exigente e rigoroso (embora querido pela maioria dos jogadores) e adepto de um futebol de luta incessante. A receita levou o Flamengo, às vésperas do primeiro clássico pelo Estadual, a uma invencibilidade de 23 partidas. E era esta série invicta, a perspectiva de estendê-la às custas do rival, e o momento positivo vivido pela equipe que animaram e arrastaram os torcedores rubro-negros ao estádio.
A última derrota, entretanto, havia sido traumática. Em 4 de dezembro de 1975, precisando apenas de um empate para se classificar às semifinais do Brasileiro, o Flamengo recebeu o Santa Cruz de Givanildo, Ramón e Luís Fumanchu, dirigido por Paulo Emílio, no Maracanã. Saiu atrás no marcador, conseguiu empatar num gol de pênalti de Zico, mas sofreu mais dois gols na etapa final e perdeu por 3 a 1, frustrando enormemente a torcida. De lá para cá, abril de 1976, Fumanchu e Paulo Emílio estavam agora justamente no Vasco. Era, em parte, a presença deles, dos últimos carrascos rubro-negros, que animava a torcida cruzmaltina.
Em parte, também, porque o Vasco vivia momento bastante favorável no confronto. Vencera os três últimos clássicos em circunstâncias amargas para os rubro-negros. No primeiro deles, pelo terceiro turno do Carioca, o Fla rapidamente abriu 2 a 0, mas permitiu a virada nos minutos finais. Como os dois times terminaram aquela etapa empatados, um jogo extra decidiria o último finalista do torneio, e terminou com nova vitória do rival por 1 a 0, gol do zagueiro Moisés, depois do árbitro José Marçal ignorar pênalti claro de Joel Santana, rasgando a camisa de Doval, e antes de terminar em batalha campal, com várias expulsões. Por fim, houve o confronto pelo Brasileiro: deu Vasco 4 a 2, com três de Roberto Dinamite.
O Maracanã explodia de gente naquele 4 de abril. As roletas registraram a passagem de 174.770 pagantes, fora gratuidades. Também não entrou nesta contabilidade quem pulou o muro do Maracanã – e não foi pouca gente. Até a marquise do estádio virou mais um lance de arquibancada. Tudo isso para assistir a um clássico da sexta rodada do primeiro turno do Carioca. Nas tribunas, como convidado especial, estava Helmut Schön, o técnico da seleção da Alemanha Ocidental campeã do mundo dois anos antes, e na ocasião em visita ao Rio para participar de um congresso da Fifa.
O jogo valia a liderança do turno: Flamengo e Vasco tinham campanhas praticamente iguais, com cinco vitórias em cinco jogos, separados apenas pelo saldo de gols (dez a favor dos rubro-negros e oito para os vascaínos). O Fla entrou em campo com força máxima: Cantarele no gol, Toninho e Junior nas laterais, Rondinelli e Jaime na zaga, Merica e Geraldo no meio-campo, Caio pela ponta-direita, Zé Roberto pela esquerda (ajudando também a compor o meio), Zico e Luisinho na frente. O Galinho chegou a ser dúvida após sofrer uma contratura abdominal no treino da tarde de sexta-feira, mas logo se recuperou.
Já pelo lado vascaíno, a expectativa ficava por conta da recuperação do volante Zé Mário. Na véspera do jogo, depois de passar um dia inteiro sob os cuidados dos “trabalhos espirituais” do massagista Pai Santana (também era outra a medicina esportiva), Zé Mário acordou sem sentir dores, supostamente em condições de jogo. Assim, o resto do time também era o titular. Mazarópi era o goleiro, Toninho e Marco Antônio eram os laterais, Abel e Renê os zagueiros, Zanata fazia a armação no meio-campo, ajudado pelo recuo do ponta-esquerda Luís Carlos. Na frente, Fumanchu jogava pela direita, com Roberto e Dé pelo meio.
Após o pontapé inicial, o Flamengo agressivo e fulminante prometido por Carlos Froner precisa de apenas 20 segundos para dizer a que veio. Caio recebe na meia direita e lança Geraldo, que entrega a Zico. O Galinho avança e devolve na frente ao Assoviador, com um ótimo passe. O meia entra na área e rola para o lado, para a chegada de Luisinho, desmarcado. Já está 1 a 0. O Vasco tenta a reação, mas Cantarele (por duas vezes), Toninho e Rondinelli salvam o perigo.
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O segundo lance crucial do jogo acontece aos 12 minutos, quando Zé Mário, numa disputa de bola no meio-campo, leva a mão à coxa e pede substituição. Sem seu guardião do sistema defensivo, aquele que todos julgavam recuperado fisicamente, a retaguarda vascaína fica ainda mais exposta. O Fla ainda cria algumas chances em tabelas deslumbrantes entre Zico e Geraldo. Mas o placar não se alterará no primeiro tempo.
O Vasco volta pressionando na etapa final, com o Fla encolhido para partir em contragolpes letais. Num deles, Luisinho recebe, avança em meio à defesa cruzmaltina parada, dribla Mazarópi e toca para as redes. Mas o árbitro anula o gol por impedimento – que não havia sido acusado pelo bandeirinha. De qualquer maneira, o segundo gol não tarda a chegar: Tadeu, que havia entrado no lugar de Geraldo, faz um lançamento para a área e o lateral vascaíno Toninho afasta mal. A bola sobra para Zico, que aguarda um quique e, de canhota, pega em cheio para fuzilar Mazarópi.
Entregue, o Vasco apenas assiste ao Flamengo dominar inteiramente o jogo. E o golpe de misericórdia vem aos 36: Zico arranca, da própria intermediária e, mais à frente, entrega a Luisinho na ponta esquerda. Recebe de volta e dá um passe espetacular de calcanhar para o centroavante, que entra livre na área, mas leva um calço de Abel. Pênalti indiscutível. Zico se apresenta para a cobrança e converte. Mazarópi nem se mexe. Inapeláveis 3 a 0.
O Vasco ainda diminui num gol de Dé, apanhando rebote de Cantarele, mas não há mais reação. Quem deixa o Maracanã comemorando é a maioria rubro-negra do maior público da história do clássico. Eram outros tempos, era outro futebol. Mas certas coisas nunca mudam.
Imagem destacada no post e redes sociais: Reprodução
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Emmanuel do Valle é jornalista e pesquisador sobre a história do futebol brasileiro e mundial, e entende que a do Flamengo é grandiosa demais para ficar esquecida na estante. Dono do blog Flamengo Alternativo, também colabora com o site Trivela, além de escrever toda sexta no Mundo Rubro Negro.
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