Por Marcelo Dunlop
– – – – estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Ah, olha ali a bola, já nos pés do cara do Coritiba de novo. Maldita. Cachorra. A bola gosta dos atacantes, é acarinhada pelos goleiros, mas maltrata mesmo é o zagueiro.
Eu, G.H., topei trocar o Santos pelo Flamengo em busca de um sonho. Provação. Agora entendo o que é provação. Provação significa que a vida está me provando. Mas significa que eu também estou provando. Provando a dor e a delícia de jogar diante dessa torcida diabólica, que nos empurra sempre – por vezes, para o inferno.
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Toma esse pontapé, bola maldita. Me deixa aqui sem neurose. Vai, meu capitão, carrega essa disgramada para o ataque. Já falhei? Já falhei. Mas quem não falha? Os comentaristas gostam de cuspir merda sobre tudo e todos, falam da suposta solidão dos goleiros. Balela. Solidão é a do zagueiro. O goleiro tem a casinha própria dele, onde é intocável. Deu ruim, mete a mão, soco, cai no chão e ganha massagem. Patifes. O defensor, sim, é quem sofre. Se falhar, paga a semana toda. E é sacado na hora, pois existe uma penca de outros para o seu lugar.
Gosto de jogar em Brasília, o ar é seco mas a torcida é pacífica. Dureza é amanhã, receber tapinha nas costas de político, ministro, aquela canalhada toda. Ih, olha lá, aquela menina está me filmando. Hoje não vou falhar. O irmão dela me fita e berra: “Gustavo Henrique, seu perna-de-pau, presta atenção!”
Hoje não vou falhar, seu sacana. Ele manda a irmã filmar, deve estar esperando eu fazer cagada para postar na porra da internet. Escrotos.
O jogo está osso duro. Os caras lá mais fechados que mão de sovina. A gente chuta, mas o Muralha está bem hoje, o puto. O Muralha, que história. Chegou ao Flamengo e foi parar na seleção. Desmoronou nos meses seguintes e só voltou a jogar na segundona. Foda-se, meu amigo Muralha, hoje precisamos atropelar. Bem que podia ser com um gol meu, numa cabeçada. O Homem-Montanha contra o Homem-Muralha! Quem sabe?
“Presta atenção, Gustavo”, berra o capitão. “Bloqueia!”. Levanto a perna esquerda. Blam! Uma cacetada de canhota me acerta no lado direito da coxa — bloqueia! A voz do capitão ecoa, está fina como a de uma mulher, desesperado. Ufa, consegui jogar para longe.
Outro dia o Adriano Imperador definiu bem a disputa de atacante e beque. É uma luta de rua. Quando o atacante recebe, eu fico do lado, correndo junto, olhando a bola, mas atento às mãos dele. Vap! E tome de bofetada nos cornos, na testa, no olho, no peito. E o juiz dá alguma coisa? Canalha, dá nada.
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Por que eu cheguei como um dos melhores defensores do país, um dos mais valorizados, e hoje sou tratado como traste pelo torcedor? Em mim mesmo eu vi como é o inferno. E por que eu? Mas por que não eu, né? Se não tivesse sido eu, eu não saberia, e tendo sido eu, eu soube – apenas isso. O que é que me havia chamado para tentar o Flamengo, se eu tinha convite do futebol francês: a loucura ou a realidade, porra?
A bola volta para nosso campo de novo. Ser zagueiro de futebol é entender que nunca se pode chegar antes. Nem o cirurgião ou o estacionador de transatlânticos precisam ser tão precisos. O atacante chuta onde quiser. Nós, não.
Vou firme na jogada. Os torcedores estão me olhando, o estádio todo está respirando tenso. Eles me odeiam, posso ver e ouvir. Toco com estilo ao lateral, e tento ver as pessoas na arquibancada. Filhos das putas, cornos, marafonas, cagões, covardes, chupadores — me dá vontade de mandar o dedão do meio e sacudir os bagos para eles.
Deve ter uns 13 minutos do primeiro tempo, se tanto. Porra, escanteio. Aqui, olha para mim, Lázaro. O garoto é bola. Vou chegar manso, vai que ninguém me nota com meus 1,96 metrão, rê rê rê. Se o moleque acertar no primeiro pau, a bola é minha. Pelo menos eu trisco nela e deixo na boa para algum puto empurrar para dentro. Vou ajeitar até o meu cabelo de samurai, quem sabe é agora?
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A bola vem. Lázaro bateu com estilo, acho que vem para mim. Porra, vou testar com estilo, tomá no cu Bebeto. Eita, a bola mudou de direção, cachorra! Não tou mais vendo nada, só vou fazer o movimento de cabeça e meter de lado. Não, ferrou! Vai ser de costas mesmo. Vou acertar lá na torcida, bando de cornos. Puf, acertei com meu coque, quase de nuca, porra! Vai entrar, na trave, vai entrar! De coque! Suque mai coque, rá rá, rá!
Gol, caceta, gol, bando de fela das putas! No canto do gramado o time inteiro agora me abraça e levanta meus braços — as câmeras me procuram, e de pé, nas arquibancadas, homens e mulheres aplaudem e gritam o meu nome — levanto os braços bem no alto, dou pulos de alegria, os aplausos aumentam. Dou saltos, gritam meu nome, e olho comovido a arquibancada cheia de admiradores.
Corro e faço o “L” com os dedos, eu amo vocês, porra, viva minha família, minha paixão. Curvo-me enviando beijos para todos nos quatro cantos do estádio, a torcida do Flamengo é foda.
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