O modelo de gestão amadora de um clube associativo tem vários problemas, mas tem também uma vantagem inequívoca: a ausência de remuneração da alta cúpula é uma barreira de entrada natural a quem porventura estivesse em busca de ganhos de curto prazo.
Não que não haja ganhos em ser dirigente de um clube de massa. Há prestígio, há poder, há fama, há projeção. Mas o incentivo clássico e universal – o dinheiro – está fora da equação em uma instituição pautada pela integridade.
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No artigo anterior enfatizei que uma SAF onde o Flamengo seja o acionista majoritário/controlador, seu representante na companhia (isto é, o presidente do CRF) terá em suas mãos uma concentração de poder jamais vista em nossa história.
E, diferentemente do que ocorre hoje, será possível se autoconceder polpuda remuneração. Aliás, diria que “possível” é uma expressão inadequada, convenhamos, não há CEO de uma sociedade anônima bilionária sem auferir ganhos compatíveis com o porte da empresa.
É bom colocar as coisas em perspectiva. Escolhi como parâmetro uma empresa que todos conhecem, a Meias Lupo, uma companhia aberta com faturamento e lucro relativamente parecidos com os do Flamengo. Na verdade, a Lupo fatura um pouco mais que o Flamengo, lucra um pouco menos, mas o Flamengo tem um EBITDA maior. Na fotografia atual, o Flamengo é um negócio melhor que a Lupo.
(Não vou resistir a uma pequena digressão: não é espantoso que uma empresa tão tradicional, com mais de 100 anos, que você conhece desde criança e que tem umas mil lojas e 35 mil pontos de venda, seja mais ou menos do tamanho do Flamengo? Eu tenho um orgulho imenso em ver o que a Nação foi capaz de fazer com um clube que 10 anos atrás era sinônimo de desastre financeiro.)
O que importa para este artigo: a Lupo deve gastar cerca de R$ 7 milhões com seus 8 dirigentes esse ano. Parecem números até modestos diante do faturamento anual, o que talvez se explique pelo fato de vários dirigentes serem acionistas, em busca de bons dividendos (a presidente é neta do fundador).
Ainda assim, a empresa fez questão de justificar ao mercado acionário o porquê de pagar esses valores: “Os diretores são as pessoas-chave que têm autoridade e responsabilidade pelo planejamento, direção e controle das atividades da Companhia”.
Digamos que a SAF Flamengo imite a Lupo e resolva repartir uns R$ 7 milhões entre, sei lá, 4 ou 5 pessoas, que imagino ser o futuro board da companhia (eu acho que, como não haverá dividendos, os valores seriam ainda maiores, mas fico com esse exemplo).
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Convenhamos, é uma quantia capaz de atiçar a cobiça de muita gente, porque não é em qualquer lugar que se pode ganhar ao redor de R$ 1MI por ano sem precisar investir capital ou conquistar o cargo após um longo plano de carreira.
Com isso, muita gente que hoje não se interessa em se envolver com o Flamengo porque ao dirigente amador se exige tempo, dores de cabeça e stress sem uma remuneração em troca, pode se sentir tentada a mudar de ideia ao perceber que o jogo mudou.
Vou ser contundente: eu garanto que na hora que ficar claro que presidir o Flamengo trará o benefício de comandar sozinho uma sociedade anônima que paga altos salários para quem a dirige, muita gente vai se sentir estimulada a tentar a chance de alcançar esse cargo.
Vale a pena interromper o raciocínio para analisar o processo político do Flamengo. Se o plano do Landim der certo, são as eleições no clube que irão coroar o comandante solitário da SAF a ser criada, como já vimos. E como são essas eleições? Muita gente acompanha, mas talvez alguns detalhes passem despercebidos. Vamos a eles.
Na última eleição, eram 6.898 associados com direito de voto, sendo que apenas 2011 votaram (sim, mais de 70% de abstenção). Desses que poderiam votar, 5025 eram sócios proprietários – mais de 70% do colégio eleitoral (embora seja muito mais barato virar eleitor nas outras modalidades).
Algumas curiosidades: ¼ dos sócios não mora na cidade do Rio de Janeiro. Aliás, 1/5 não mora sequer no estado do Rio de Janeiro. Só entre os sócios proprietários havia quase 700 morando em outros estados ou países (e aí fica claro os motivos pelos quais Landim lutou tanto para impedir o voto a distância).
Por outro lado, mais da metade dos eleitores mora na Zona Sul do Rio de Janeiro. Um recorte geográfico mais amplo, incluindo a região da Barra e Recreio, mais a região da Grande Tijuca, leva ao espantoso número de 4830 associados – 70% dos sócios do Flamengo moram nas regiões mais caras da Cidade Maravilhosa.
Um recorte populacional ainda mais estreito, analisando apenas os sócios capazes de irem a pé ou bicicleta para a sede (ou seja, os que moram no Leblon, Gávea, Ipanema, Lagoa, Jardim Botânico, Humaitá, Horto, Copacabana e Leme), aponta 2906 eleitores – mais de 42%.
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Embora haja pequenas variações, não é disparatado afirmar que, com tantas abstenções, o grosso do eleitorado é formado pelos sócios do entorno da sede, algo até esperado em um processo que exige a presença física do eleitor. Com isso, é relativamente fácil fazer campanha: 70% do eleitorado mora entre Vila Isabel e Recreio. Somando Niterói à lista é possível falar com quase ¾ do eleitorado.
Durante 2 meses, 2 ou 3 reuniões por semana em locais próximos à residência desses associados conectam o candidato com pelo menos metade dos eleitores.
E, claro, muita propaganda na sede. Uma parte importante da campanha é a colocação de faixas dentro do clube. Tem regras, tem sorteio, tem que fiscalizar para que o “vento” não derrube suas faixas. São muitas atividades de campanha. Levar correligionários uniformizados com a cor da chapa. Caminhar pelos corredores do clube apertando a mão dos sócios e pedindo votos.
Aparecer pela manhã de um dia de semana e conversar com pais e mães que levaram seus filhos nas escolinhas de esportes. Jogar pelada e depois comer um mocotó no bar. Ter um apoiador cara de pau o suficiente para fazer amizade com as babás que levam os bebês para tomar sol nas primeiras horas da manhã, na esperança de que elas convençam o patrão a votar em você.
Eu fui candidato, mas não fiz (quase) nada disso. Nem cabe aqui refletir sobre a minha campanha, praticamente uma “anti-campanha” diante das práticas desse ambiente, mas terminei a jornada convencido de que, tendo concorrido em ambas, em termos de acesso aos eleitores e de obrigação de expor a plataforma de campanha, uma campanha para o DCE da UERJ exige bem mais esforço do que concorrer à presidência do Flamengo.
Com a diferença sutil de que nos tempos que fui do DCE toda a receita que tínhamos provinha dos serviços de xerox e das festas que fazíamos, ao passo que no Flamengo o vencedor comanda um orçamento bilionário.
Só que, se você prestou atenção, já sabe que no Flamengo menos de 30% dos eleitores comparece à sede para votar, portanto a esmagadora maioria não liga. Prevejo, no entanto, 2 fenômenos simultâneos se o Flamengo virar SAF e as eleições do clube passarem a representar o direito exclusivo do futuro presidente do CRF mandar e desmandar na sociedade anônima, inclusive podendo desfrutar de régia remuneração.
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O primeiro fenômeno envolve os atores tradicionais da política rubro-negra, ou seja, os cerca de 500 que costumam ir ao Conselho Deliberativo, participam de grupos internos, debatem intensamente em grupos de Whatsapp e respiram o ambiente da política todos os dias do ano. Nesse grupo quase todos estão sempre prontos a se mobilizarem. E como a oportunidade é rara e inédita, imaginar que haverá 3 ou 4 lideranças dispostas a disputar o certame até o final chega a ser até uma projeção conservadora.
O segundo fenômeno envolve a maioria do colégio eleitoral, ou seja, os outros 60% a 70% de associados que tem baixo ou nenhum envolvimento com a política do clube. É possível supor que a maioria age assim porque não vê qualquer vantagem em se engajar em algo que traz muito trabalho, muita encheção de saco e zero remuneração. Agora, se tem milhões na mesa para quem chega em primeiro lugar, não é difícil imaginar que vários mudarão de ideia.
Com uma vantagem adicional: dentre essa maioria silenciosa de milhares de sócios proprietários que ninguém conhece direito, há, aposto, dezenas de pessoas com currículo impecável, história de sucesso profissional, alta qualificação e inquestionável capacidade de gerir empreendimentos de grande monta.
Nada é mais sedutor em uma eleição do que o antipolítico. A política é tida como uma atividade desprezível, antiética, imoral, suja. Mesmo que seja a micropolítica, aquela que se faz dentro do quadrilátero da sede da Gávea.
Bom candidato é o que nunca sujou as mãos com isso, que nunca fez um acordo com alguém que detesta, que não tem ideologia, não tem uma mancha no passado, não tem um erro público, nunca disse nada de errado, embora também nunca tenha dito nada de certo, afinal nunca falou nada.
É esse ser iluminado, outsider, com invejável competência técnica, que se apresentará como o perfil ideal para trazer novos ares, uma renovação completa, bem adequada aos novos tempos da SAF. Por que não? Afinal, se o clube associativo vai ficar para trás, nada melhor que coroar um novo líder completamente imune à “corja”.
Dito isso, nesse conjunto da maioria silenciosa e distante, é absolutamente natural que também uns 2 ou 3 renovadores encarem o desafio de ser o pioneiro da nova era rubro-negra, a era da sociedade anônima. E não vão sozinhos, virão acompanhados de dezenas de aliados angariados também nesse amplo contingente de associados hoje afastados da política, para quem todos nós, que ficamos esses anos todos afogados em nossas desavenças, somos exatamente a mesma coisa, um bando de sanguessugas.
Portanto, na primeira eleição pós-SAF (sempre lembrando, se Landim conseguir, isso será daqui a menos de 1 ano) podemos ter umas 5 ou 6 chapas concorrendo. Até mais, quem sabe (mesmo com o endurecimento das regras para inscrição).
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Meu palpite: em 2024 o colégio eleitoral será menor que em 2021. Não houve venda de novos títulos de sócio-proprietário, os Off-Rio foram praticamente expulsos do clube por escolhas deliberadas da diretoria, contribuintes precisariam ter se associado até agosto de 2021, em plena pandemia. Não será surpresa se forem 6 mil eleitores e olhe lá…
Mais chapas disputando certamente elevará a quantidade de votantes. Mas não tanto assim. Nas eleições presidenciais de 2022, com o Brasil rachado ao meio e voto obrigatório, a abstenção foi de 21%. Não há razão para acreditar que mais de 60% votarão – ainda mais se o Flamengo insistir na ilegalidade e vetar o voto a distância.
Pois bem: com 3600 votantes e 6 chapas na disputa, o vencedor vai ter uns 800 votos, talvez até menos. Fica a pergunta: quanto é preciso gastar em propaganda para conquistar 800 eleitores? Não sou especialista em marketing eleitoral. Mas gosto de estabelecer comparações.
Nilópolis é uma cidade com menos da metade da arrecadação do Flamengo. O prefeito de lá foi eleito com cerca de 40 mil votos e larga vantagem sobre o segundo colocado. Ele gosta de ser chamado de Abraãozinho, mas o nome completo é Abraão David Neto.
Se você um dia na vida já ouviu falar em Nilópolis, terra da Beija-Flor, certamente já se ligou que o prefeito integra a família real da cidade, uma espécie de Casa de Windsor local. Ainda assim, Abraãozinho previu gastar mais de R$ 1 milhão na campanha.
Se R$ 1 milhão bastou para garantir ao Abraãozinho 40 mil votos em Nilópolis, não tenho motivos para duvidar que com quantia semelhante é possível contratar uma boa agência para estruturar uma campanha para atrair a atenção de 800 rubro-negros dispostos a afiançar o sonho de comandar a SAF no Flamengo. É bastante dinheiro, mas lembre-se que de outro lado da mesa tem uma fortuna muito maior a esperar o vencedor.
Ronaldo empenhou R$ 400MI para comandar o Cruzeiro. John Textor também, no Botafogo. Para comandar a SAF Flamengo, um sócio proprietário só precisa investir uma pequena fração dessa quantia, suficiente para derrotar seus oponentes.
Puxo pela memória e não lembro de um gatilho tão óbvio para atiçar a cobiça, um sentimento absolutamente humano. Se a SAF for aprovada, já sabemos a primeira consequência: estará dada a largada para a Corrida do Ouro Rubro-Negro. Salve-se quem puder.
No próximo artigo, vou abordar um aspecto que afeta mais aquela maioria de sócios que comentei antes, os que possuem uma relação intensa com a sede social. Se o futebol migrar para a SAF, o caixa único do Flamengo será desfeito, passando a ter, de um lado, uma sociedade bilionária e, de outro lado, um clube empobrecido e totalmente dependente da primeira.
Walter Monteiro é advogado e sócio do Flamengo. Foi candidato a presidente do clube em 2021. Escreve no MRN sobre finanças, governança e assuntos afins. Siga-o no Twitter.
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