Meus confrades flamengos, escrevo na sexta, antes portanto do nosso match contra o Vasco – o qual, espero muito, que tenha sido jogado com nossos infantes, como tem sido desde o início do insosso campeonato estadual.
E claro que espero que tenhamos vencido e bem. Por mais que há alguns anos eu não veja mais com bons olhos o campeonatinho do Rio, há que se cuidar das estatísticas, mesmo que muitas vezes elas sejam enganosas. Um amigo jornalista me dizia algumas vezes, muitos anos trás, que estatística é a matéria que esclarece que, se um de nós dois comeu um frango e o outro ficou com fome, na verdade cada um de nós comeu meio frango.
No entanto, manter a freguesia do Vasco e continuar bem à frente do Fluminense na contagem de estaduais – até que estes acabem – devem ser sempre uma meta. Apenas por isso é que devemos dar o mínimo de atenção, ainda assim sazonalmente, a este conturbado certame. Diria que estadual é como a dengue: de dois em dois anos a gente deve se preocupar.
Mas a análise que pretendo fazer é sobre a reação gigantesca da Magnética, o maior fenômeno social brasileiro, diante da conquista da Copa São Paulo de Juniores, a dita Copinha.
Muitos cronistas, mormente da imprensa paulistana, teceram críticas à festa protagonizada pela massa rubro-negra em todos os cantos do país. Houve quem dissesse que “Copinha não é para ganhar, é para revelar talentos”, quase como propondo a ideia de que quem se deu bem mesmo foi o Ji-Paraná e não o Flamengo.
Afinal, o Ji-Paraná revelou Pimentinha, e nós apenas conquistamos um troféu. Tais alegações foram seminalmente destruídas pela frase lapidar, antológica, do nosso Lucas Silva: “Final não se joga. Final se ganha”. Esta frase devastadora causou admiração porque ali se viu, se percebeu, flutuando, pairando sobre nosso atacante, o espírito rubro-negro que nos faltou em 2017: o Deixou Chegar Fudeu, cuja doutrina teve seu nome simplificado à sigla (DCF) pelo cronista flamengo Arthur Muhlemberg em 2009.
No blog: O cisne rubro-negro
As origens do DCF antes de ser simplificado a essa sigla remontam a dois Brasileiros conquistados pelo Flamengo: 1987, quando o restante do Brasil constatou embevecido que o rubro-negro seria campeão logo depois que Renato Gaúcho enfurecido quase entrou com bola e tudo no Mineirão. E 1992, quando nos classificamos quase milagrosamente para nos jogos decisivos atropelar a tudo e a todos. Sim, não era para chegarmos. Mas deixaram. E aí, fudeu.
Este espírito estimula, motiva, dá ânimo e colore o sangue de todo rubro-negro que se preza. O DCF é como se fosse uma Marseillaise flamenga, um brado de guerra, uma decisão intempestiva de tomar o território à força, o espírito dos combatentes franceses que caminhavam em direção ao Reno para matar e morrer no confronto com o exército austríaco.
Entendez-vous dans les campagnes
Mugir ces féroces soldats
Ils viennent jusque dans vos bras
Égorger vos fils, vos compagnes
Aux armes, citoyens! Formez vos bataillons!
Marchons, marchons
Qu’un sang impur abreuve nos sillons!
“(O estandarte ensanguentado se ergueu.
Ouvis nos campos
Rugir esses ferozes soldados?
Vêm eles até os vossos braços
Degolar vossos filhos, vossas mulheres!
Às armas, cidadãos,
Formai vossos batalhões,
Marchemos, marchemos!
Que um sangue impuro
Banhe o nosso solo! )”
Há, claro, nos dias de hoje, uma interpretação que critica o “sangue impuro”, dando à expressão a pecha de “racista” (um pensamento que faz os jogadores franceses mas de origem africana se recusarem a cantar o hino). Não creio que um hino composto em Strasbourgo pós Revolução Francesa (quanto a este assunto, prefiro a leitura de Burke) pudesse se referir a racismo – na verdade, sangue impuro é o do inimigo, no caso, os austríacos liderados por seu imperador.
E sim, claro que é anacrônica a expressão ‘degolar vossos filhos, vossas mulheres”, inadmissível achar legal essa parte da letra – mas acredito ser uma metáfora que Rouget, em 1792, pode ter pensado para “chupem, comentaristas da Fox e da ESPN”; enfim, interpretações são livres.
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O que importa é que para o Flamengo o que prevalece mesmo é o espírito resumido na frase de Lucas Silva, a frase magistral que parece um eco dos tempos: ao Flamengo não cabe fazer picuinhas ou dissertar sobre merecimentos, cabe vencer. Vencer, vencer, vencer. E diria que o torcedor, tal e qual gato que nunca comeu melado, se lambuzou dessa forma na comemoração porque estávamos carentes do DCF. Em 2017, o Flamengo foi a antítese disso – na verdade, em 2017 nós chegávamos e quem se fodia era a gente, como aconteceu na Copa do Brasil, na Sul-Americana e de certa forma no Brasileirão. Na Libertadores a gente nem saiu, quanto mais chegou a algum lugar.
Assim, meu artigo é para pedir aos viciados em objetividade, em sangue frio, em análises ditas imparciais e revestidas de uma neutralidade comezinha e cheia de dengos, que entendam de uma vez por todas porque a Magnética foi tão enfática em sua comemoração: faz parte de nosso ethos, de nosso superego: o nosso Ideal do Ego e nossa Consciência Moral apontam para um Flamengo que supera dificuldades, que nem sempre vence, que sofre com percalços, que às vezes sai decepcionado, mas que acima de tudo precisa entender o que é vencer decisões, o que é o Deixou Chegar, Fudeu. Sem isso, a essência do clube, do time, a essência centenária, os valores sólidos, perdem seu sentido. E quando perdemos, que seja com o Sangue de Almir (como em 1966 contra o Bangu).
É por causa dessa doutrina, desse espírito, que nos estabelecemos como Flamengo – e não aceitem outras versões. O DCF está de volta. Vamos curtir, sempre, porque isso nunca nos tornará menos Flamengos.
Gustavo de Almeida é jornalista desde 1993, com atuação nas áreas de Política, Cidades, Segurança Pública e Esportes. É formado em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense. Foi editor de Cidade do Jornal do Brasil, onde ganhou os prêmios Ibero-Americano de Imprensa Unicef/Agência EFE (2005) e Prêmio IGE da Fundação Lehmann (2006). Passou pela revista ISTOÉ, pelo jornal esportivo LANCE! e também pelos diários populares O DIA, A Notícia e EXTRA. Trabalhou como assessor de imprensa em campanhas de à Prefeitura do Rio e em duas campanhas para presidente de clubes de futebol. É pós-graduado (MBA) em Marketing e Comunicação Empresarial pela Universidade Veiga de Almeida. Atualmente, escreve livros como ghost-writer e faz consultorias da área de política, além de estar trabalhando em um roteiro de cinema.
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