Bruna Uchôa | Twitter @BrunaUchoaT
As imagens daquela noite congelaram em minhas retinas. Se as areias do tempo teimam em escorrer pelos nossos dedos, os grãos referentes aquela noite de julho de 2011 deixaram vestígios nas minhas mãos.
Quase todo Rubro-Negro fanático guarda uma mania, ou várias. Naquela noite de jogo na Vila, eu havia improvisado um torço com a bandeira sagrada do Mengão. As pontas da bandeira, por sua vez, serviriam como uma oportuna mordaça fajuta e aceita,para amortecer a tensão. O apito inicial foi como um beliscão na boca do estômago. Sabe-se lá o motivo, mas eu sentia que aquela seria uma grande noite. Temperada com a pirraça que alguns conhecidos residentes da casa ao lado, imprimiam. Temperada com a fé que eu sempre carreguei. Temperada com a presença de grandes nomes em campo.
Eu sempre detestei a presença de qualquer torcedor que não o Rubro-Negro nas proximidades da minha arquibancada caseira, o meu sofá. Não fosse para estar no seio da Nação, casmurra que sou, o isolamento era sempre a minha opção predileta. As pilhérias que nasceram do prematuro primeiro gol santista, foram respondidas apenas com um sorriso amarelo. As mãos tremiam. Seguia o jogo.
O segundo do Santos partiu do pai do primeiro, Borges. As piadinhas babacas elevaram o tom. Meu queixo tiritava de um frio que ninguém mais naquela sala sentia. Eu rejeitei a água que minha amada mãe tentou me dar. Socos e socos no estômago! Já maldizia céus e terras quando apenas dez minutos depois, fui obrigada a reconhecer e amaldiçoar um dos gols mais lindos, talvez o mais lindo, que eu já vira um guarda-meta nosso sofrer. Foi arte. Tabelinha entre o Neymar e o Borges, autor dos dois primeiros gols. O garoto avançou, driblou o magro de aço Angelim com a junção de um drible da vaca e um elástico, e mandou para as redes magistralmente. As minhas mãos foram dos olhos a boca, e a minha cabeça do alto do meu pescoço, para os joelhos. Quando me ergui para suportar aquele chocolate dignamente, os presentes deram de cara com o meu rosto moreno já ruborescido. A visão estava borrada, molhada. A primeira lágrima desceu queimando em minha face. As pilhérias se multiplicaram, tornaram-se agressivas e até maldosas. ”Invadiam” a privacidade de uma garota de 15 anos, para escarnecer de seus sentimentos, da sua relação com o que considerava extremamente sagrado.
Foto FlamengoDois minutos depois, eu enxugava as lágrimas e emitia um grito ursino. Foi R10, que se aproveitou da falha de Dracena. Dignidade, obrigada! Eu já me sentia menos cabisbaixa quando cinco minutinhos depois, Renato cobriu a cabeça de Arouca e deixou pra Deivid, que numa invertida rápida encontrou Léo Moura. Cabeçada de TN7. Gol. Gol cor de esperança.
Ainda era a primeira etapa (!!!) quando o mestre dos gols perdidos Deivid mandou pras redes após escanteio de Ronaldinho Gáucho. O meu olhar fuzilava os presentes de tal forma que os transeuntes (se é que havia algum aquela hora da noite, em minha rua) devem ter ouvido claques e buns. Meus gritos deixaram de ser ursinos e entraram em modo felino. Era agressivo me ouvir, naquele momento. Eu havia crescido alguns metros em prepotência, furor e extraordinária satisfação, e depois murchei para chorar como uma mocinha emocionada. Os escarnecedores saiam do local. Que saíssem, covardes! Respeito! Aquilo era o meu Flamengo.
O intervalo teve pressa em acabar. A ode ao futebol precisava continuar! Eu mantinha as mãos entrecruzadas, como quem analisa uma proposta. O olhar era quase indecente, posso apostar. Eu estava pronta pra desfilar o meu orgulho. Eu queria mais. Na caixa dos peitos, sem recuo.
Por incrível que pareça, não desabei em queixas com o gol de Neymar, que tornou a pôr o Santos na frente aos cinco minutos. Eu já estava com imenso orgulho pela postura da equipe com aquele resultado, mas não me dei por vencida. Não dava pra duvidar do Flamengo. Não dava. 17 minutos depois e Ronaldinho, após passar deliciosamente em dribles por Edu Dracena e Arouca, foi derrubado pelo último. Deu-se em seguida AQUELA COBRANÇA DE FALTA, meus amigos! Aquela que você provavelmente não irá esquecer por muitos e muitos anos. Aquela mesmo, que fez a barreira dos Santos subir o suficiente para a bola rasteira de R10 invadir o gol de Rafael. Inacreditável a escolha do dentuço. Mitológico. Inesquecível. Coisa de mestre. Aquilo ali merecia muito mais que o Puskás e, se nisso há alguma inverdade, só Zico pode me julgar. Era 4 a 4 na Vila Belmiro.
E quando eu já agradecia a São Judas Tadeu, TN7 tocou pra R10 avançar e chutar magnificamente no gol santista. Golaço, aço, aço.
Preciso dizer que jamais fui fã do tal Ronaldinho Gaúcho. Não por faltarem anos de bola em alto nível, mas por ser eu alguém que tem premissas um pouco (ou um muito) absurdas para considerar algum atleta ícone em alguma coisa. Naquela noite, entretanto, eu fui um pouco dos meninos que em campos improvisados replicam os lances que o tal Ronaldo cravou na história.
Viramos o jogo, e eu virei bicho. Gritava, histérica. Soluçava de chorar. Beijava o escudo apaixonadamente. Era esse tipo de sentimento que me fazia, e que me faz, levantar da cama todos os dias mais convicta que o mundo ainda vale a pena.
Lembro que fiquei meses, muitos meses, sem falar com os primos e vizinhos que estavam presentes naquela noite, para tirar a paz da minha arquibancada solitária (naquela noite linda, os recomendei para lugares terríveis, e os ordenei atitudes não menos terríveis). Lembro que no outro dia, desfilei pela escola olhando a todos com justificada superioridade. Lembranças, doces lembranças…
Te agradeço, meu Mengão. Por pautar minha história, me dar sentido e cor. Cor, cor…tenho certeza que se a vida é colorida, o é pelo vermelho e preto.