O que o quadrinista Scott Adams e uma briga sobre preços de ingressos no Twitter podem ensinar?
Em seu monumental livro “Ganhar de Lavada – Persuasão em um mundo onde os fatos não importam”, o brilhante quadrinista Scott Adams discorre sobre vários fatores que o levaram a prever, against all odds, a vitória do trilionário Donald Trump na campanha para presidente dos EUA. Adams, autor das fantásticas tirinhas do Dilbert – a maior crítica de todos os tempos ao mundo corporativo e seus vícios – foi achincalhado e discriminado por toda a intelligentsia (artistas, militantes etc) que diz adorar a democracia desde que se vote e defenda a linha de pensamento deles próprios. No fim, saiu vencedor. E deixa bem claro que só lançou o livro porque a previsão, no fim das contas, estava certa, e isso é um atributo que ninguém pode ignorar.
O livro, já à venda no Kindle, mas no papel apenas em 15 de maio, é indispensável para qualquer pessoa que se meta a trabalhar com marketing político. Adams discorre sobre dissonância cognitiva, que é quando seu cérebro reage, quase por sobrevivência, criando narrativas que você pode suportar. “O cérebro humano não foi feito para a verdade”, praticamente é o que diz o livro. Mas um item, dentre dezenas citados por Adams, chama a atenção, principalmente depois que, incrivelmente, a discussão entre a torcida no Flamengo, mormente no Twitter, voltou a ser a chatíssima e interminável polêmica povo/ingressos baratos/ganho esportivo x elite/ingressos caros/perda esportiva; dois tuiteiros – um deles, inclusive, até jornalista de uma tv americana radicada no Brasil – se digladiam, ambos imersos profundamente em… Viés de Confirmação, item descrito como Adams como a “notícia que você usa para confirmar algo que você pensa”. E mais incrível: o Viés de Confirmação só serve para te fazer feliz – sem necessidade de haver qualquer traço de realidade entre o que aconteceu e aquilo que você pensa.
Adams cita, magistralmente, dois fatos ocorridos na política americana: a notícia de que Barack Obama seria “ligado a grupos muçulmanos” e a notícia de que Trump teria feito acordo com os russos. Ele se deu ao trabalho de fazer uma profunda pesquisa, e não encontrou absolutamente nenhum fato concreto que embasasse minimamente as duas “informações”. Mas para partidários anti-Obama e anti-Trump, os fatos não importam, já que as notícias confirmam aquilo que eles pensam e sentem.
O Flamengo mais uma vez bateu o recorde do ano de público – e isso, sinceramente, não é novidade alguma. Para o Flamengo, colocar 60 mil pessoas dentro de um estádio é coisa tão simples e natural quanto a Tia Surica fazer um feijão (que nem o famoso feijão da Vicentina) que sirva mais de 20 pessoas. Para tanto, o clube efetivamente deu uma boa abaixada no preço dos ingressos, trazendo então torcedores com menor poder aquisitivo. Com isso, diz o colunista de TV, a vitória veio. Puro, puríssimo viés de confirmação, alguém achar que o Flamengo venceu por causa do público – quando este mesmo Flamengo vive dando vexames homéricos diante de públicos bem maiores (cito aqui, a contragosto, o tenebroso 30 de junho de 2004, sem mais explicações). O Flamengo venceu porque jogou melhor e fez mais gols que o Inter. Apenas isso. Claro que a torcida ajuda, e isso ninguém discute. Mas não é o fator determinante.
Do outro lado, um tuiteiro exalta a importância do ingresso mais caro – e eu já escrevi alhures, na crônica The Trouble With Flamengo, que esse é um problema real. A narrativa do desdentado que agora pode apoiar o time e levá-lo ao título brasileiro é bonita. Mas não paga as contas. O tuiteiro exagerou ao dizer que “não se sente bem”. O colunista contra-atacou republicando um twitter no qual o tuiteiro dizia achar legal “o Maracanã parecer um shopping”.
Olha, eu também acho.
Passei minha infância inteira, adolescência e parte da juventude frequentando um pardieiro. Banheiros impraticáveis, sacos de mijo voando, brigas, empurra-empurra, loucura para comprar ingressos. Tenho 50 anos, vi o Flamengo tricampeão em dois anos, fui a jogos com Doval no ataque, vi títulos brasileiros no Maracanã. Para um pai com uma criança, na verdade duas, era tarefa das mais duras. E isso em um tempo no qual, na boa, nosso estágio civilizatório estava em níveis muito mais tranquilos do que hoje, quando há uma cultura da violência, do mais forte, do mais macho, da porrada. Assim, se um pai pode acessar um “shopping”, ver o jogo com seu filho, comer um lanche no intervalo e sair numa boa, eu aprecio sim esse shopping. A tal da “saudade da geral” só é defendida por quem sempre foi de tribuna de imprensa ou similares – quem sente saudade de um lugar em que se via os pés dos jogadores, onde a todo momento vinha um objeto – até dejeto – da arquibancada? Só mesmo quem acha bonitinho ver o geraldino pulando no gol do Nunes. É lindo, reconheço. Mas pertence a um outro tempo, do qual não mais precisamos.
A mesma questão do ingresso: cobrar cinco reais por um jogo de futebol e pagar 900 mil por um jogador não é mais sustentável. O estádio agora tem aluguel. Não é mais terminado em ERJ, mas é muito mais seguro. Isto custa dinheiro. Se o clube precisar colocar alto para pagar suas contas, tem que fazer isso e não ser criticado por jornalistas saudosos de um tempo em que não precisavam nem pagar suas próprias contas. Perdoem, mas o clube tem conta para pagar.
Qual o viés de confirmação do tuiteiro? É ver que o jogo do Corinthians, com ingresso mais caro, deu mais dinheiro. Ok, deu sim. Mas isto, por outro lado, não impede que este Flamengo de boa gestão (por mais que nos irrite MUITAS vezes no futebol, mas MUITAS mesmo, principalmente com essa mania dos azuis de desqualificar quem critica) possa TENTAR criar uma política de inclusão, que é exatamente o que defendo. Um jogo ou outro? Um lugar mais barato? Sorteio de ingressos mais baratos? Que tal 30 por cento dos ingressos custarem metade do preço mas saírem por sorteio online? Que tal parcerias com Smiles ou Méliuz para devolução de capital? Ou quem sabe o Flamengo se encaixa na Lei Rouanet?
Sim, o Flamengo precisa resolver dois problemas: o de trazer sua gente para dentro do estádio e o de pagar suas contas. Mas se formos definir prioridades, todos nós sabemos que no mundo real, livre de narrativas e de dissonâncias cognitivas, quem fala mais alto é o boleto. E estão aí Vasco, Botafogo e Fluminense para confirmarem o que estou dizendo.
A regra para a Magnética sempre foi a do Field of Dreams, o maravilhoso filme com Kevin Costner, Ray Liotta e James Earl Jones: “if you build, they’ll come”. O Flamengo construiu uma boa vitória no Ceará, outra contra a Ponte e… eles vieram. Se tivéssemos perdido os dois jogos, mesmo com 20 reais de ingressos, teria sido o mesmo público? Talvez não, porque a crise estaria grave. Talvez sim, por causa do apelo do Guerrero. Mas o fato é que este talvez não é um fato. O fato é que a torcida, historicamente, é embalada por vitórias, mais do que nenhuma outra no mundo. Não há dúvidas de que se ganharmos da Ponte Preta quinta e da Chape na Arena Condá domingo, o público de Flamengo x Vasco será algo a ultrapassar todas as expectativas. Se vencer, o Flamengo pode brincar com o preço dos ingressos, fazer grandes promoções, fazer pacotes de bairros, levar mais “desdentados”. O clube pode, sim, fazer políticas inclusivas.
Mas qualquer crítica a ingressos mais caros, que dão sustentabilidade econômica ao aluguel do estádio, soa como demagogia e viés de confirmação. Flamengo é povão, sim. Mas pode pagar a passagem em vez de pular a roleta. É o que todos nós esperamos, sempre.
Até semana que vem.
Imagem destacada nos posts e nas redes sociais: Divulgação
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Gustavo de Almeida é jornalista desde 1993, com atuação nas áreas de Política, Cidades, Segurança Pública e Esportes. É formado em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense. Foi editor de Cidade do Jornal do Brasil, onde ganhou os prêmios Ibero-Americano de Imprensa Unicef/Agência EFE (2005) e Prêmio IGE da Fundação Lehmann (2006). Passou pela revista ISTOÉ, pelo jornal esportivo LANCE! e também pelos diários populares O DIA, A Notícia e EXTRA. Trabalhou como assessor de imprensa em campanhas de à Prefeitura do Rio e em duas campanhas para presidente de clubes de futebol. É pós-graduado (MBA) em Marketing e Comunicação Empresarial pela Universidade Veiga de Almeida. Atualmente, escreve livros como ghost-writer e faz consultorias da área de política, além de estar trabalhando em um roteiro de cinema.
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