Em janeiro de 58, o Flamengo excursionava sob o comando de Jaime de Almeida e escreveu mais um grande capítulo da sua história
Por Emmanuel do Valle
Inaugurado em 1940, o Estádio Alberto José Armando, popularmente conhecido como “La Bombonera”, é um dos grandes palcos do futebol mundial e entrou definitivamente para o imaginário do torcedor brasileiro pelo fim dos anos 90, época em que o Boca Juniors, seu dono, empilhou títulos continentais, como símbolo de alçapão, um campo onde a pressão aos visitantes é insustentável e o triunfo boquense é quase certa. E foi neste mítico gramado que o Flamengo conquistou, há 60 anos, uma vitória memorável, em partida que integrou uma excursão sul-americana da equipe rubro-negra: exibindo um futebol extremamente dinâmico e técnico, aplicou categóricos 4 a 2 ao Boca Juniors.
A expectativa do confronto
Os argentinos tinham ainda viva na memória a última visita do Flamengo ao país, no começo de 1953, quando os rubro-negros trouxeram de volta o troféu do Torneio Quadrangular de Buenos Aires, depois de empatar com o Boca na mesma Bombonera e com o San Lorenzo, além de derrotar o Botafogo por 3 a 0, no clássico carioca jogado na capital portenha. Na ocasião, o técnico rubro-negro era o mesmo Jayme de Almeida, nome histórico do clube como jogador, que dirigia novamente a equipe de modo provisório durante a excursão sul-americana realizada naquele início de temporada 1958.
Jayme era o comandante provisório devido às prolongadas especulações em torno da permanência do paraguaio Fleitas Solich, técnico rubro-negro nas cinco temporadas anteriores, cujo contrato venceria em março. A imprensa noticiava uma certa insatisfação do treinador com alguns dirigentes, o que poderia leva-lo a deixar a Gávea rumo ao Vasco ou ao Palmeiras ou ao futebol da Argentina, país onde ainda viviam seus familiares. Além disso, Solich era o nome preferido do presidente da CBD, João Havelange, para dirigir a Seleção Brasileira na Copa do Mundo daquele ano, na Suécia. Entretanto, nada disso se concretizaria: Fleitas Solich renovou contrato com o Flamengo exatamente naquele fim de janeiro.
No blog: Uma história de clássico, de baile e de casa cheia
Outra boa impressão – esta, mais recente – causada no público e na imprensa argentina havia sido a deixada pelo Vasco em seus dois jogos contra o mesmo Boca Juniors, e que terminaram em empates, apesar do amplo domínio dos cariocas. O bom futebol demonstrado pelos cruzmaltinos virou parâmetro pelo qual se mediria o desempenho dos rubro-negros em sua visita à Bombonera. Apesar de estar bem no meio do segundo maior jejum de sua história (entre 1954 e 1962), o Boca Juniors vinha de um aceitável quarto lugar no Campeonato Argentino do ano anterior, encerrado em dezembro, e terminaria o torneio seguinte como vice-campeão, atrás apenas do Racing.
No time boquense que entrou em campo para receber o Flamengo naquele 31 de janeiro de 1958, chamavam a atenção três nomes que eram velhos conhecidos dos rubro-negros: o ponta-esquerda paraguaio Silvio Parodi (ex-Vasco), que jogou apenas amistosos pelos xeneíses; o centroavante uruguaio Javier Ambrois (ex-Fluminense), que havia disputado a Copa do Mundo de 1954 e fora contratado poucas semanas antes; e o treinador Bernardo Gandulla, ex-jogador cruzmaltino no início dos anos 40.
Mas os destaques daquela equipe, os nomes que a história boquense consagrou, eram outros: o experiente Federico Edwards – zagueiro duro, homem de seleção argentina e que atravessou quase toda a década de 50 como dono da posição no clube – e um novato (20 anos) chamado Antonio Rattín – volante de boa técnica, muita garra e um fenomenal senso de liderança, que se tornaria um dos maiores jogadores xeneíses de todos os tempos, além de capitão do clube e da seleção por quase toda a década seguinte.
Um Fla que se renovava
O Flamengo, que vinha em excursão desde o dia 9 de janeiro, colocaria seu time titular em campo. Era a equipe que chegara a brigar palmo a palmo com Botafogo e Fluminense pelo título carioca de 1957 até a metade do returno, no início de novembro. Mas uma sequência de quatro empates e apenas uma vitória nos seis últimos jogos acabou afastando-a da briga. De qualquer modo, era um time renovado, com vários jovens se firmando nos lugares de uma leva de antigos ídolos negociados na metade do ano – casos de Evaristo (vendido ao Barcelona), Paulinho (ao Palmeiras) e Índio (Corinthians).
O goleiro era Fernando, trazido do Bangu. Joubert, o lateral-direito, era outro nome que se afirmava, enquanto o experiente Jordan atuava pelo outro lado. No miolo de zaga jogava o sólido Pavão. Jadir, recentemente convocado para a Seleção, completava o setor como quarto-zagueiro. Na frente da área jogava Dequinha, o capitão e o esteio do time. O quinteto ofensivo tinha Joel e Zagallo nas pontas, o talentoso Moacir como meia-armador, Dida era o ponta-de-lança e Henrique, o centroavante. Seria este o time que entraria em campo sob aplausos da torcida local na Bombonera e atuaria pelos 90 minutos.
Rola a bola
O primeiro chute, logo no primeiro minuto, é do Flamengo: Henrique atira de longe para testar o goleiro Giambartolomei. O Boca responde em dois lances quase idênticos, duas cobranças de falta roladas de Ambrois para Parodi, com chutes violentos do ponteiro paraguaio. Fernando defende a primeira em dois tempos, enquanto a segunda passa perto da trave e assusta. Quando o Fla volta a ameaçar, aos nove minutos, é letal: Dida recebe de Dequinha, avança em velocidade até a intermediária boquense e lança para a infiltração de Henrique. O centroavante dispara um petardo, que Giambartolomei defende com dificuldade, mas dá rebote. Moacir, livre, aparece para tocar para as redes.
O arqueiro argentino, garantidor do empate boquense diante do Vasco com grandes defesas, impediria o Fla de ampliar a vantagem minutos depois, ao salvar de modo magistral um chute à queima-roupa de Moacir, na marca do pênalti. Do outro lado, o Boca tem um gol de Parodi anulado por impedimento claro. Mas acaba empatando de qualquer modo aos 28: após uma blitz rubro-negra, o zagueiro Rico espana e a bola cai no pé de Ambrois, que liga o contragolpe com Rodríguez. Este passa a Parodi, que cruza para a conclusão de Rattín. Fernando salva na primeira, mas não consegue conter a cabeçada de Ambrois.
Não houve tempo nem mesmo para a pressão pela virada xeneíse. Na saída de bola, Henrique toca para Moacir, que avança e abre a Zagallo na esquerda. O ponteiro corta para dentro, entra na área e dispara um petardo, que entra no canto direito de Giambartolomei. Inapelável. Um minuto depois de ceder o empate, o Fla já está novamente em vantagem, já é novamente o senhor do jogo. Tão senhor que o Boca se assusta e começa a recorrer a outros expedientes.
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Depois de o árbitro ignorar um pênalti em Henrique, a bola volta ao meio-campo e, em lance casual, um jogador argentino se lesiona e precisa ser atendido. Imediatamente o técnico xeneíse entra em campo para tirar satisfações com o árbitro, e uma confusão se forma com a entrada também da comissão técnica rubro-negra. Naquele tempo, nem sempre um amistoso era sinônimo de cordialidade, cavalheirismo ou mesmo desinteresse. Com a bola novamente rolando, o Flamengo dá mais mostras de superioridade, em duas grandes chances com Henrique – na segunda, novamente parado na área com falta não marcada.
O Boca reequilibra as ações, ancorado numa boa exibição de Rattín, mas logo depois leva nova estocada: Jadir deixa a quarta-zaga rubro-negra e avança, lançando Zagallo pelo meio. O ponta passa a Henrique, e este abre no espaço criado para Dida. O camisa 10 invade e atira com fúria, estufando pela terceira vez as redes de Giambartolomei aos 38 minutos do primeiro tempo. Depois de um chute venenoso de Joel que o arqueiro boquense salva arrancando aplausos, o Fla toca a bola até o apito final da etapa.
No fim, teve até olé
Após o intervalo, o Boca volta furioso, querendo a reação a todo custo. O Fla rebate, e aos cinco minutos, num contragolpe, balança as redes com Zagallo, mas o árbitro anula, apontando impedimento de Henrique na jogada. Com Pavão e Dequinha firmes no setor defensivo, o Flamengo continua indo à frente com frequência. Henrique, com sua valentia costumeira, era o jogador que mais importunava a zaga argentina. Chegou a sofrer outro pênalti, após uma entrada dura de Héctor García, mas que o árbitro preferiu marcar apenas falta fora da área.
O Boca tenta reagir na metade do segundo tempo, mas Fernando intervém com eficiência. Porém, pelo outro lado, Giambartolomei é mais exigido. Salva brilhantemente um tiro de Henrique após passe de Dequinha. Depois, outra vez bloqueia finalização do centroavante rubro-negro, que recebera bola de Joel. Aos 26 minutos, entretanto, nada pode fazer para evitar o golaço de Moacir: Dequinha entrega a Henrique, que abre na esquerda com Zagallo. O ponteiro passa a Moacir, e o Canivete dá um drible espetacular em no zagueiro Carlos Rico, avança e chuta colocado, tirando do alcance do arqueiro boquense.
Já virou goleada. Com os 4 a 1 no placar, o Flamengo deita e rola em plena Bombonera. Zagallo, em jogada sensacional, dribla quatro boquenses e dá a Henrique, que chuta para o arqueiro argentino espalmar com dificuldade para escanteio. Em seguida o Fla gira a bola, gasta o tempo. Moacir toca para Joel, que dá a Henrique, que passa a Dida, que recua a Jadir, que estica novamente até Joel, que devolve a Henrique, e este a Moacir. E assim segue o baile rubro-negro, deslumbrando o público argentino, que aplaude com vontade.
Nos minutos finais, ainda há tempo para Ambrois sofrer pênalti de Pavão e converter com um chute seco, descontando o placar. Mas não restam mais dúvidas da superioridade do conjunto rubro-negro. Firme na defesa, veloz e impetuoso nos contragolpes, com perfeito senso coletivo e esbanjando qualidade técnica, o Flamengo encantou o público portenho e escreveu seu nome na história do alçapão boquense.
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Crédito imagem destacada: Reprodução
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