É no campo, é na bola que o futebol é decidido. Muitas vezes tal preceito fica em segundo plano em meio às polêmicas, péssimas arbitragens e movimentações tendenciosas nos bastidores das federações desportivas brasileiras e sul-americanas. Mas nunca se deve esquecer: futebol deve ser jogado dentro das 4 linhas. E bem jogado. Com dribles, passes de efeito, jogadas feias, bizarras, bruscas ou brutas. Tudo isso faz parte desse esporte que amamos.
Futebol brasileiro é/era conhecido e reconhecido no mundo como “futebol-arte”. Que produz ótimas joias que acabam por ser lapidadas no exterior. Então porque quando temos esses jovens craques desfilando seu potencial e talento pelos campos nacionais, há perseguição entre os próprios jogadores, que consideram qualquer ato de habilidade um atentado ao pudor e aos bons costumes? Quando foi que o futebol brasileiro se tornou tão frio e distante de suas raízes?
E uma coisa que não pode ser dita sobre o Flamengo de Maurício Barbieri, é que se priva de jogar um bom futebol. Que se acovarda perante os adversários. Longe disso. Joga com a consciência que tem grandes individualidades, e sabe que por tê-las, tem a obrigação de impor sua proposta de jogo. Ainda que nem sempre resulte em bons jogos aos olhos dos espectadores. Mas também faz parte da história do futebol tais oscilações.
Flamengo veio a campo sem a presença de seu camisa 10, suspenso, e com inúmeros jogadores pendurados. Paquetá cometeu infração, sofreu o cartão amarelo e está fora do jogo contra o Paraná no fim de semana. Em campo, o 4-1-4-1 da temporada contra o defensivo Fluminense disposto em um 3-6-1, desfalcado de Airton Lucas, Pedro e Marcos Júnior. Tinha toda a cara de ser mais um jogo de paciência, tal qual contra o Corinthians. Mas o gol ainda no 1°Tempo modificou o roteiro previsto, e se teve um jogo mais parelho na posse de bola, ainda que o Flamengo a tratasse muito melhor enquanto a tinha a seus pés.
É muito interessante ver como aos poucos, conceitos implantados desde o início da trajetória de Maurício Barbieri como treinador vem se consolidando na equipe. Renê ataca os espaços vazios em diagonal, se integrando ao time como um meia-esquerda enquanto Vinicius Jr busca a amplitude e a linha de fundo. Deixou de ser apenas um zagueiro pela ala esquerda. Se firma cada vez mais como uma barreira aos adversários e elemento-surpresa nos ataques rubro-negros. No lado direito, o inverso. O ponta busca infiltrações pelo meio, função exercida por Marlos Moreno nesta rodada, enquanto Rodinei faz a ultrapassagem. Saída de bola sempre com toques, recusando chutões (somente quando necessários) e promovendo saída qualificada pelos pés de seus meias. Paquetá e Everton Ribeiro (exercendo nesse jogo a posição de Diego) ditam o ritmo, alternando o lado que se projetam para criar, confundindo a marcação em qual lado é o “forte” ou o “fraco”. Jogada do segundo gol é um bom exemplo disso.
Nos mapas de calor, as diferenças de funções entre os laterais. Renê mais defensivo, participando da criação de jogadas pelo meio e saída de bola; Rodinei mais presente no setor ofensivo, como opção de amplitude. Entre os pontas, a participação de Vinicius Jr no recuo à saída de bola, auxiliando Renê, e a busca pela linha de fundo; Marlos mais preso a certo espaço na lateral, busca dialogo principalmente com Rodinei, sempre presente em seu setor. (Fonte: SofaScore)
Entretanto, nem tudo são flores (que se perdoe o trocadilho). Time ainda falha em sua recomposição defensiva, permitindo espaços entrelinhas que podem ser explorados pelos adversários. Rodinei mostra certas deficiências em cobrir sua lateral, necessitando de apoio para fechar o setor, que sofreu constantes subidas de contra-ataque do Fluminense, já que Marlos Moreno está ainda sem ritmo de jogo e não tem características defensivas, de forma similar à Vinicius Jr.
Fluminense teve como estratégia inicial congestionar o meio-campo com excesso de jogadores, dificultando a saída rubro-negra, e propondo contra-ataques com poucos, mantendo sempre as linhas de marcação compactas, permitindo certa liberdade apenas ao trio mais à frente composto por Sornoza, Jadson e João Lucas. Não foi raro o número de vezes que os donos da casa transitaram do 3-6-1 para o 5-4-1 durante os momentos defensivos.
Mesmo perante essa trincheira tricolor, Flamengo soube esfriar os ânimos, apresentando novamente a maturidade que teve no jogo anterior. Manteve a calma, trocou passes e inversões para o lado mais desmarcado, sempre com coordenação de Paquetá e Cuellar, tratando a posse de bola ofensiva e recuperação imediata após perda como pilares de sua proposta e estilo. Algo crucial para esse 4-1-4-1 que possui mais voluntariedade que vocação defensiva. Jogar com mais meias tem seu preço. E até aqui, o time vem lidando bem com as transições defensivas, ainda que com momentâneos sufocos.
Primeiros 15 minutos discorrem no jogo de ataque contra defesa. Boas movimentações e trocas de passes, mas pouca efetividade no terço final de campo em ambas as equipes. Chance mais clara vem com Vinicius Jr em chute da entrada da área após sobra da defesa. Fluminense peca demais no último passe de seus contra-ataques, recuando e fechando a zona central, obrigando Flamengo a atacar mais pelas alas. Decisão de certa forma acertada, já que mesmo sendo um time técnico, bons aproveitamentos nos cruzamentos não são o forte da equipe rubro-negra. Apenas Everton Ribeiro e Rodinei tiveram sucesso em suas tentativas, ainda que com números fracos, com 3 acertos em 6 tentados e 1 acerto em 8 tentados, respectivamente.
Na jogada em destaque, a dificuldade apresentada pela defesa tricolor aos visitantes. Como Dourado tem dificuldade de participar das triangulações pela baixa capacidade técnica, a defesa se permite quebrar momentaneamente a linha com Gum se adiantando para marcação sobre Paquetá que irá receber a bola, deixando apenas com a vigilância de Luan Peres. Vinicius Jr faz o movimento correto de romper a última linha da defesa, mas pelo congestionamento de jogadores pelo centro, passe por elevação é interceptado por Renato Chaves.
Aos 20’, ainda que timidamente, Fluminense se lança mais ao ataque (sempre atento às suas linhas de marcação) e conseguindo certos espaços pela direita às costas de Marlos Moreno. Posicionado mais a frente, como um ponta ou segundo atacante, as qualidades na distribuição e infiltração de Sornoza são perdidas. Na mudança de postura da equipe tricolor, ao começar a produzir mais momentos ofensivos do que apenas atuar em transição, seu recuo à intermediária auxilia à saída e faz com que momentaneamente os donos da casa assumam as rédeas da partida.
Contra-ataque proposto na saída de bola executada por Sornoza. Aproveita da baixa intensidade de Marlos na recomposição defensiva (sequer aparece na imagem capturada), que força o deslocamento de Cuellar do centro, abandonando Sornoza e abrindo espaço para um passe no espaço vazio pelo centro. Jogada mal concluída em chute cruzado que se perde pela linha lateral inversa, caindo nos pés de Renê.
Logo aos 25’, Flamengo já reassume a posse de bola e recomeça a ditar o ritmo. O que obriga destaque aos condutores da equipe nesta partida: Cuellar, Paquetá e Everton Ribeiro. O primeiro é um leão a frente da defesa, cobrindo espaços através de ótimo posicionamento, é o construtor da transição entre as linhas de articulação da equipe. É o carregador de piano e ao mesmo tempo o cérebro do meio-campo. Está em ótima fase técnica e física. Paquetá é o armador que cobre cada parte do campo. Não possui posição. É a definição de “todocampista” no esquema de jogo rubro-negro. Articula jogadas, infiltra, pisa na área, se posiciona como referência no ataque, cai pelas beiradas, cobre o corredor, fecha o meio intercepta cruzamentos em bola rolando, faltas ou escanteios. O jogador mais completo do futebol brasileiro no primeiro semestre de 2018. O pilar de equilíbrio dos setores. Já Everton Ribeiro é o toque de classe no meio-campo. Tão voluntarioso quanto Paquetá, aparece como opção em ambos os lados, agregando ao time seu talento e capacidade de ler as linhas e aplicar passes verticais de dificuldade elevada e inalcançável à alguns jogadores. Varia entre um bom meia-armador à um ótimo ponta-construtor pela direita.
E nesse domínio do meio-campo readquirido, vem o gol de abertura do placar. Aos 26’, Everton Ribeiro inicia saída de bola pela esquerda, aciona Renê em um 1-2 que inverte papéis, com o lateral se projetando em diagonal e Everton Ribeiro oferecendo amplitude. O camisa 7 com sua visão de jogo acima da média percebe deslocamento de Paquetá à frente da grande área, se posicionando no que seria lugar de Dourado, executa o cruzamento, ou melhor, o passe por elevação, que Paquetá escora de cabeça para trás esperando infiltração de Marlos Moreno. O colombiano se infiltra, tem a gola de sua camisa rapidamente puxada por Marlon em momento de imaturidade, sofrendo o pênalti. Dourado, na sua confiança exemplar perante o guarda-redes, não desperdiça e decreta FLU 0X1 FLA. Com direito a ceifada e muita vibração do camisa 19 contra seu ex-time.
Dourado continua sua saga em tentar-se adaptar à um estilo de jogo que exige mais do que sua capacidade técnica permite. Tromba desajeitadamente com os zagueiros, executa paredes e pivôs de forma atabalhoada, recua para participar da armação das jogadas sem muita criatividade. Mas tudo feito com muito suor e disposição, não há como negar. Entrada de Vizeu no 2°Tempo (com requintes de “planejamento prévio” por Barbieri) elucida suas dificuldades em participar de um time que deseja trocar passes e rodar a bola com velocidade. Sua lentidão e falta de posicionamento em lances capitais atrasam o desenvolvimento ofensivo da equipe.
O mesmo não pode ser dito de Vinicius Jr, Paquetá e Everton Ribeiro. Desfilam seu talento após o gol, com dribles desconcertantes (para fúria dos adversários e consternação de Abel Braga), trocas de passes bem trabalhadas com intensas movimentações e desmarques. Time cada vez mais se afia e desempenha o pretendido por Barbieri. Fluminense ensaia uma reação, dando sempre prioridade à busca pela linha de fundo.
E nesse ponto, vale destacar Vinicius Jr e Paquetá. Ambos são jovens dotados de grande habilidade. Sabem tratar bem a pelota. Sempre ousam e acreditam que podem executar lances de grande dificuldade. E essas são suas maiores armas: a confiança e a vontade de ser diferente. Claro que se excederam. Obvio que merecem críticas construtivas. São jogadores em evolução, afinal. Mas que não sejam podados de suas individualidades, do lúdico que o futebol brasileiro sempre teve nos pés de grandes jogadores como Garrincha, Julio César Uri Geller. A plasticidade dos movimentos também faz parte da história do futebol e devem ser respeitados, e não censurados.
Para o 2° Tempo, Fluminense entra com 2 substituições imediatas: Matheus Alessandro e Pablo Dyego. Tais alterações são tentativas claras de se reverter o placar, o que propicia margem para contra-ataque dos visitantes, o que abre o jogo e o torna mais rápido. Fluminense insiste nas jogadas aéreas e de linha de fundo, rechaçadas pela defesa, com intensa participação de Lucas Paquetá, interceptando inúmeros cruzamentos no miolo da zaga (claramente ilustradas das manchas de calor em seu mapa). Quando a linha defensiva falha, resta à Diego Alves intervir de forma providencial, garantindo que o 0 não saia do placar.
Entretanto, tal configuração muda de figura após lesão em encontrão de Pablo Dyego em Rhodolfo, que precisa ser substituído por Robinho. Logo, Fluminense perde o meio-campo e busca igualar a situação mais pela vontade do que pela organização com constantes bolas alçadas à defesa rubro-negra. Jogo se torna aberto, com domínio de Fluminense sobre a posse após recuo consciente do Flamengo, que passa a buscar saídas de contra-ataque na força da amplitude de Rodinei e Vinicius Jr. Vale, portanto, ressaltar o desempenho novamente seguro da dupla Rhodolfo e Léo Duarte, que se firmam cada vez mais como titulares, ainda que Rever e Juan venham a disputar a vaga. Mesmo a entrada Thuler na vaga do lesionado Rhodolfo não mudou a postura ou desempenho do sistema defensivo.
Jean Lucas entra para fechar o meio na vaga do extenuado e fora de ritmo Marlos Moreno. Vizeu entra na vaga de Dourado, buscando maiores coletividade e entrosamento fornecido pelos Garotos do Ninho. Vizeu, em substituição com viés de antecipação por parte de Barbieri, entra para ser uma referência na área aos meias de maior qualidade e capacidade de retenção. O que consegue fazer.
E aos 33’, uma jogada que deixa claro o que Barbieri deseja extrair dos 11 iniciais. Coletividade amparada no talento. Léo Duarte toma a bola e inicia a jogada que passar por Vinicius Jr pela linha lateral que ginga, passa para Jean Lucas que inicia uma série de passes em dois toques entre Paquetá, Ribeiro e Rodinei pela intermediária. Rodinei se projeta pela linha lateral, freia, não aposta na projeção de Jean Lucas entre os zagueiros, recua para Everton Ribeiro que inicia a saída de bola em “U”, passando a bola à Thuler, Léo Duarte e Renê, que aciona mais à frente Vinicius JR, ignorando a segunda projeção de Jean Lucas, agora pela esquerda. Carrega a bola pelo meio até passar à Everton Ribeiro pela esquerda que imediatamente manda a pelota para Rodinei mais à linha de fundo, que freia o ímpeto novamente e devolve à Ribeiro, que nota infiltração de Paquetá. Tabela perfeitamente executada, o camisa 7 sai em ótima posição às costas do lateral. Levanta a cabeça, nota Vizeu posicionado na trave, e não hesita em aplicar passe rasteiro ao jovem atacante que domina com calma de artilheiro, deslocando o goleiro e tendo apenas o gol vazio à sua frente. Festa da torcida rubro-negra nas arquibancadas.
Após o gol, Flamengo se posta defensivamente e permite que Fluminense tenha a posse e crie jogadas, com grande insucesso. Tempo passa, a defesa afasta bolas perigosas para longe de sua meta e a reversão do placar não é alcançada.
Vitória incontestável. Vitória de um time que a cada jogo ganha maturidade, na mesma proporção que seu jovem técnico. Cada vez mais solto e falador à beira do gramado, merece o reconhecimento justo, ainda que não seja o técnico ideal no imaginário da maioria dos rubro-negros. Mas vem fazendo trabalho sólido que apresenta evolução. E essa evolução consolida cada vez mais a liderança e situa o Flamengo como um dos grandes favoritos à conquista do Campeonato Brasileiro de 2018. Que a fase e as boas perspectivas permaneçam. Segue o líder!
Imagem destacada nos posts e nas redes sociais: Gilvan de Souza / Flamengo
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