O problema não é meu
Jean Paul Sartre
O paraíso é para todos
O problema não sou eu
O inferno são os outros, o inferno são os outros.
Todo mundo que lê mais de três parágrafos ao dia conhece ou pelo menos já ouviu essa expressão “O inferno são os outros”, escrita por Jean Paul Sartre na peça “Entre quatro paredes”, na qual duas mulheres e um homem são condenados a permanecerem pela eternidade em um cômodo.
Não conheço a peça e nem mesmo sua dinâmica, mas é fato que esse plot é muito interessante e pode servir de comparação com muitas situações da vida nacional – todas elas envolvendo convivência com o diferente.
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Eu apelo para a expressão de Sartre para comentar o interessante tweet do ator e humorista Marcelo Adnet, que reproduzo a partir de agora. Obviamente, após o texto retornaremos com nossas considerações.
“A morte de uma jovem torcedora do Palmeiras comprova: não tem lei em estádio. Clubes contribuem com isso ao engajar trogloditas para a violência, “o inferno”. Eu, que sofri pouco, já tomei pedrada em SP, já vi minha mãe sob ataque no metrô do Rio. Já desviei de um soco que pegou na querida Natália Dill. Por vestir uma camisa diferente, apenas.
Tudo sob risos e deboches de PMs.
Hoje não vou a estádios e adio a ida de minha filha a eles. Perdi um amigo tricolor no FlaxFlu. Temos DOIS estádios interditados por violência das torcidas. Tudo ensinado como “natural”. No futebol, violência é RECURSO e não infração. Faz-se vista grossa pra não desagradar o dinheiro. Taí o resultado. Que se puna cada vez mais e que isto não destrua o futebol brasileiro. Justiça!”.
É difícil discordar do nobre ator alvinegro: a meu ver, a linguagem “bélica” trazida para os campos de futebol é, também, um fator a ser considerado. Se em vez de torcermos pela nossa memória, pelo que nos une aos nossos pais (os times), pelo que nos prossegue com os filhos (os times) estamos preocupados em “território” e “força” e “confronto”, é sinal de que o propósito – que, reconheçamos, não é lá muito claro – do futebol há muito está obscurecido.
Torcida por esporte ou guerra?
Clubes contribuem? Eu não tenho dúvidas. O “engajamento” das torcidas acaba se confundindo com elementos de guerra e confronto, o ódio toma conta e a razão de ser – o esporte – desaparece. Passa-se apenas a um jogo de razão, culpa e ressentimento. “Foi pênalti” e “Quem atirou a garrafa foram os outros” passam a ser questões primordiais.
A questão é que quando Adnet cita “Inferno”, numa clara alusão ao chamamento de Gabigol no ano passado (que, diga-se, eu acho que até pode-se questionar, sim), ele insere aquele fato em outro muito grave, que é a morte estúpida da torcedora palmeirense (morte esta que, na minha opinião, deveria ensejar paralisação de campeonato).
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E quando Adnet, de forma irresponsável, decide sozinho que “o inferno” faz parte desse contexto, e em seguida atribui toda as responsabilidades às polícias militares, me parece apenas que ele está sendo um bobalhão: usando o episódio lamentável para reforçar duas de suas agendas, a anti-Flamengo e a anti-Polícia Militar.
Novamente, friso: há, evidentemente, questões a serem abordadas quando a expressão “inferno” é usada no meio do futebol. Quais as consequências desse uso? Me argumentam que “não houve danos ou feridos” no famoso jogo contra o Atlético Mineiro.
O inferno, a força, a fúria – violência tem time?
Mas já dizia Wittgenstein: os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo. Quando usamos a expressão “pelotão” ou mesmo “força” ou, quem sabe, “fúria” para falarmos de torcida de futebol, reflitamos: contra quem é o pelotão, a força, a fúria?
Haverá de ser contra alguém. E, sim, há questões técnicas que a Polícia Militar pode e deve abordar, mas a de São Paulo: será que foi bem-feita a contenção da área de visitantes de modo a evitar que os torcedores do Palmeiras fizessem uma tentativa de invasão?
Hoje a PM do Rio de Janeiro, por exemplo, celebra dezenas de ocasiões em que se elegeu o Batalhão de Policiamento em Estádios como o melhor grupamento do Brasil. Aqueles agentes hoje agem com uma neutralidade impressionante, isolando áreas inteiras para que se possa evitar qualquer tipo de confronto.
Nosso ponto é aprovar ou não o trabalho da PM, nosso ponto é aprovar ou não a palavra “inferno”, nosso ponto é lamentar “o amigo que se perdeu no FlaxFlu” ou nosso ponto deveria ser, sim, começar a todos, juntos, questionarmos que relação é essa que criamos com o futebol, na qual projetamos os fetiches mais sanguinários e os ódios mais sem sentido?
Adnet e exemplos clubistas
Adnet quase acertou. Se ele começa a falar do “inferno” e dali envereda para “Força”, “Pelotão”, “Fúria” (de novo), bem como outras insanidades, creio que teríamos aí um contexto para a abertura de um novo debate, instigante, e que pudesse trazer alguma luz para um futebol que não deveria mais tolerar trágedias.
Mas o “humorista” foi mais forte. Preferiu mencionar duas vezes o Flamengo, reclamar da PM, puxar a brasa para sua costela. E é por conta disso que não saímos do lugar. Por conta disso estamos empacados, todos, discutindo “quem tacou a garrafa”, “foi pênalti”, “foi você quem começou”. A PM. Ora, a PM. O que a PM dos estádios poderia fazer com pessoas que brigam a quilômetros de distância, ou então com torcidas que atacam nas estradas?
A nossa questão é cultural e precisamos começar a resolver já. É preciso desenvolver o respeito, é preciso contemplar a história, bem como é preciso dialogar – depois de banir os loucos dos estádios.
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Um palmeirense precisa entender que o Corinthians tem uma grande história. Assim como um rubro-negro precisa contemplar a história gigantesca do Vasco da Gama, que mesmo na draga recentemente deu mais demonstrações de imensidão. Um gremista pode ter rivalidade, mas precisa saber reconhecer o talento de Falcão, Batista, Valdomiro e Figueiroa. É apenas isso: tentar ver no Outro algo mais do que um inferno. E não usar tragédias para se encher de razão.
Adnet teve todas as chances de abrir o debate, mas preferiu fechar, acirrar os ânimos, atirar ainda mais uma torcida contra a outra. Assim, em vez de conviver, preferiu encontrar, no próximo, o seu inferno particular. Uma pena. Estava na hora de termos melhores lideranças para conduzir o debate público.
Já que o inferno somos nós.
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