Depois de um ano desastroso do Flamengo, muito se falou sobre falhas na gestão, em especial no futebol. É inegável o progresso realizado pelas administrações do clube nos últimos 10 anos, especialmente no que tange à responsabilidade fiscal. Porém, neste ano, ficou evidente que ainda precisamos evoluir bastante para evitar que a vantagem competitiva financeira que conquistamos tão arduamente seja desperdiçada.
Com nosso atual poderio econômico dentro do país, a margem de erro que possuímos é bem superior à dos demais clubes. Assim, não é natural a perda de tantas competições como ocorreu em 2023. E lá vamos para mais um treinador. Porém, é crível achar que os erros foram apenas do comando técnico, não tendo existido falhas de dirigentes no planejamento e execução em nosso principal departamento?
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Por isso, urge falarmos sobre governança corporativa. Termo que hoje se tornou uma espécie de “conceito mágico”, permitindo que muitos usem a expressão com noções distintas, tornando-a perigosamente elástica e atrapalhando discussões sérias sobre o tema.
Portanto, irei fazer uma abordagem conceitual também. A ideia não é apresentar modelos ou respostas prontas, mas sim lançar ideias para fomentar um debate nas redes sociais com a Nação Rubro-Negra e também dentro dos muros da Gávea.
Segundo o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), Governança Corporativa é “o sistema pelo qual as organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre proprietários, Conselho de Administração, Diretoria e órgãos de controle”.
A origem do termo vem do vocábulo grego kubernaein utilizada por Platão em sua obra “A República”, onde, por meio de metáforas, ele aborda o que entende ser as melhores práticas para governar e os atributos para os líderes exercerem seu poder.
A palavra utilizada tem relação com o mecanismo do leme das embarcações e, portanto, tem significado próximo a “dirigir”. Metaforicamente, o filósofo compara o ato de governar ao timoneiro que precisa guiar/conduzir seu barco e as pessoas que estão nele em segurança mesmo com as diversas intempéries que o mar pode oferecer.
Já o conceito moderno vem do crescimento das organizações, onde a administração deixou de ser praticada pelos donos das empresas e passou para as mãos de profissionais especializados. Daí se remonta um conflito clássico entre os proprietários e os gestores, denominado por “conflito de agência” – onde os sócios da empresa (agentes principais) contratam executivos (agentes secundários) para, em troca de uma remuneração, exercerem o poder em seus nomes.
Porém, nem sempre há coincidência entre os interesses mútuos. A governança, então, é o sistema pelo qual as organizações são dirigidas, estabelecendo valores, regras e procedimentos para que os interesses de todos os stakeholders (partes interessadas) sejam respeitados.
Trazendo o tema para o Flamengo, há especificidades que precisam ser observadas para que se estabeleça o modelo de governança mais adequado ao clube. Por ser um clube associativo, temos características que nos aproximam da ideia de uma empresa e outras que são mais comuns em um órgão público.
Para que se adote um modelo de governança é preciso evidenciar quais são os interesses dos donos. Aí temos a já tradicional pergunta: “quem é o dono do Flamengo? ”. É possível termos duas visões, relacionadas ao modelo híbrido de negócios que um clube, que não seja uma SAF, possui.
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A primeira é oriunda da comparação a uma empresa. Por esse ponto de vista, os donos seriam os sócios proprietários, que compraram um título do clube (semelhante a uma cota/ação), possuem lugar nos Conselhos para deliberarem sobre o clube e são os que hoje, majoritariamente, escolhem o presidente. O fato de possuir ampla concorrência também nos conduz à ideia de um modelo com atributos empresariais.
O outro ponto de vista possível é a referência ser um ente público e não um modelo empresarial. Isso ocorre pelo imenso interesse público envolvido, pela ausência de finalidade lucrativa e pelo fato do poder ser exercido por meio de um pleito eleitoral com fixação de mandatos. Por essa maneira de se enxergar, não há um dono e o poder é exercido perante representação popular e se prestaria contas para a sociedade, que no caso seria a Nação Rubro-Negra.
A torcida também se encaixa no papel de agente principal por ser inegavelmente o maior financiador do Flamengo. Por essa ideia, o torcedor precisaria ter seu papel ampliado, participando da escolha do presidente do clube, por exemplo. Já o sócio representaria a Nação nos poderes fiscalizador e legislativo e seria alguém elegível para as chapas a serem inscritas.
Hoje, o Flamengo é estruturado com uma semelhança maior ao que denominei no quadro acima de visão convencional e o discurso desejado é o de ser gerido com as melhores práticas empresariais. Contudo, é preciso observar uma característica que exige um processo de governança mais próximo de um ente governamental.
Clubes associativos como o nosso, possuem eleições regulares, tal como acontece com o governo, o que acarreta interesses eleitorais que muitas vezes fazem com que as alas políticas, tanto vencedoras como derrotadas, se preparem mais para os pleitos e conquista/manutenção de poder do que para os objetivos do clube como agremiação esportiva. Assim, regras rígidas de governança precisam blindar áreas estratégicas desses interesses “partidários” e da visão de médio prazo que um mandato ocasiona.
O que a chapa vencedora precisa definir são as diretrizes, além dos eleitos serem responsáveis pelo monitoramento do desempenho dos funcionários, que precisa estar baseado em metas. A execução da operação deve ter sustentabilidade, independente do presidente eleito.
Da mesma maneira que na administração pública há um quadro permanente de servidores, há necessidade de criar no clube uma maneira de permitir termos um corpo técnico altamente qualificado, com profissionais sendo contratados em processos seletivos rigorosos (talvez públicos) com remuneração compatível com o mercado, sem nepotismo ou escolhas baseadas em amizades, ou interesse eleitoral.
É preciso separar a gestão da governança da gestão do clube social e esportivo. Sócios eleitos são torcedores e são amadores por natureza, já que não podem sequer perceberem remuneração pelo trabalho como presidente ou vice. Logo, precisarão exercer outra atividade para sustento de suas famílias. O Flamengo não é para se compartilhar dessa maneira. As decisões do dia a dia devem ser tomadas integralmente por especialistas bem remunerados.
Portanto, a chapa vencedora formaria o conselho de governança do clube (board). Caberia, portanto, a esse comitê a supervisão da direção estratégica, com instituição de mecanismos para melhorar o desempenho da gestão, bem como supervisão dos executivos.
Já o corpo profissional ficaria abaixo de um CEO contratado e não seria formado por sócios. Nem o presidente, nem os vice-presidentes teriam responsabilidade pela operação. Competiria aos executivos o processo de accountability, que é um jargão corporativo para se referir a um conjunto de práticas utilizadas pelos gestores para prestação de contas e responsabilização pelas suas ações.
A separação rígida entre sócios eleitos formando o comitê de governança e profissionais contratados exercendo a gestão do clube é fundamental para evitar que interesses eleitorais sejam responsáveis por critérios de escolha e, especialmente, que sejam empecilhos de responsabilização de quem toma decisões importantes para o planejamento e execução do desempenho esportivo.
Capitais políticos ou sociais são competências importantes para escolha de membros do board de governança central, que assim possuem totais condições de representatividade para definição das diretrizes mestras e serem “os olhos do dono”, mas não devem ser o critério para escolha de um chefe de um departamento que cuidará de scouting, análise de desempenho, competições esportivas de alto nível, preparação física e psicológica de atletas, etc.
Assim, caberia à chapa eleita as funções que estão apresentadas no quadro abaixo:
Outro ponto é que o modelo de governança precisa tratar das especificidades da indústria esportiva, onde não basta maximizar a utilização dos recursos, é necessário vencer! Trata-se de um grande desafio, pois resultados de campeonatos não são garantidos por indicadores.
Há inúmeros fatores imponderáveis na competição esportiva. Por mais criteriosa que seja a seleção da equipe, incluindo comissão técnica, não deixará de ser uma aposta. Se precisamos escolher criteriosamente jogadores, treinadores, preparadores físicos, é inconcebível não acontecer o mesmo com os gestores. As equipes mais competitivas por um tempo mais longo são justamente as mais bem geridas.
Assim, para que o Flamengo efetivamente alcance outro patamar, de maneira sustentável, é preciso que as lideranças da Gávea tenham coragem para implantar um modelo de governança onde se valorize as melhores práticas, com afastamento de sócios eleitos de funções de gestão, especialmente nas áreas esportivas.
Jorge E. F. Farah (JEFF) é Sócio-proprietário do Flamengo e administrador de empresas com experiência na gestão pública e privada. Siga no Twitter: @JEFFarah