Nos últimos dias, a notícia da criação da Liga Brasileira (Libra) surpreendeu os torcedores de todos os clubes brasileiros. Como não poderia deixar de ser, a discussão sobre as cotas de TV tomou as redes sociais. Um dos debates é o possível favorecimento ao Flamengo no novo modelo de divisão dos direitos de transmissão dos jogos.
Em 2019, os clubes brasileiros importaram o modelo inglês para a negociação com TV aberta (TV Globo) e TV fechada (SporTV e TNT Sports). Um modelo é apontado como o mais justo. Nele há três fatias para repartir o dinheiro para cada clube. O Grupo Globo e a Turner, produtora da TNT Sports, têm quantias fixas para distribuir a todos os clubes.
Dessa forma, o novo modelo inglês no Brasil equilibrou as cotas de TV fechada e aberta no Brasil. Em 2019, por exemplo, a divisão de R$ 1,62 bilhão aconteceu proporcionalmente da seguinte maneira:
– Quantia fixa igual a todos os clubes (R$ 22 milhões em 2019):
- Grupo Globo: 40%
- Turner: 50%;
– Número de jogos por temporada:
- Grupo Globo: 30%;
– Audiência na temporada:
- Turner: 25%;
– Performance de cada equipe:
- Grupo Globo 30%;
- Turner 25%.
*Observação: todas as porcentagens são referentes aos valores de cada empresa em 2019. O Grupo Globo gastou R$ 600 milhões com direitos de TV aberta e R$ 500 milhões de TV fechada. Enquanto a Turner pagou R$ 520 milhões para transmissões em TV fechada.
Essa divisão tornou o futebol brasileiro mais justo. Uma opinião praticamente unânime entre especialistas. Em 2019, por exemplo, o Flamengo (campeão brasileiro, batendo diversos recordes ao longo do campeonato) arrecadou R$ 30.496.042 a mais do que a Chapecoense (última colocada do torneio). Ou seja, a diferença entre os extremos corresponde a 3,05% do total gasto pelo Grupo Globo.
“O modelo de TV no Brasil sempre privilegiou as grandes torcidas e não pensou que os clubes de pequena torcida não têm orçamento para competir com os grandes”, afirma Amir Somoggi, especialista em marketing esportivo. “Então, acaba surgindo esses mecenas para salvar alguns clubes”, aponta.
No modelo anterior havia uma grande desigualdade entre as quantias que cada clube arrecadava. Isso porque a negociação era individual pelos clubes de grande torcida, que acabavam por embolsar montantes extremamente superiores aos clubes menores. O modelo inglês, aplicado na TV aberta e fechada, acabou com isso.
A grande diferença — e fator desequilibrante — das cotas está no pay-per-view ou PPV. No entanto, o motivo não parece ser o que está sendo mais discutido. Muito se fala sobre o desequilíbrio porque o modelo favorece clubes de maiores torcidas. O Grupo Globo, detentor dos direitos do PPV com os canais Premiere, assinou um acordo com todos os clubes em 2016.
O valor a ser distribuído foi de R$ 650 milhões, com duas fatias para todos os clubes: uma quantia mínima, assim como no modelo de TV aberta e fechada, ou seja, o mesmo do modelo inglês, e outra com variantes de acordo com uma pesquisa de dados da emissora. Logo, assim como no modelo de TV fechada e aberta, a diferença não seria gritante.
Entre 2017 e 2018, porém, pelo menos 16 clubes enfrentavam crises financeiras e por isso a maioria fez um acordo com o Grupo Globo para usar o contrato assinado em 2016 como garantia para empréstimos bancários. Vale ressaltar que os clubes já haviam recebido luvas pela assinatura do contrato, mas a maioria do montante foi consumido por dívidas. No entanto, o Grupo Globo fez reconsiderações no acordo para não sair no prejuízo. A primeira medida foi acabar com o valor mínimo distribuído a todos.
Entretanto, quatro clubes não entraram nesse acordo com o Grupo Globo porque tinham boas condições financeiras. Quais os clubes? Corinthians, Flamengo, Grêmio e Palmeiras. Sendo assim, o quarteto continuou a receber o valor mínimo dentro daqueles R$ 650 milhões.
Além disso, os R$ 650 milhões garantidos para o coletivo acabou, porque a emissora temia que não arrecadaria um valor mínimo (o grupo não divulga os valores). Então, se os R$ 650 milhões diminuem, todos saem perdendo. Mas, enquanto quatro clubes mantiveram o valor mínimo (somando à queda do valor geral), esses quatro saem em vantagem, em detrimento dos outros dezesseis.
Situação hipotética para facilitar o entendimento: o Grupo Globo oferecia R$ 150 milhões para os 20 clubes, de maneira que R$ 5 milhões seriam fixos para cada um. Os R$ 50 milhões restantes seriam divididos de acordo com dados de pesquisa sobre torcidas. Ou seja, seriam as variáveis. Contudo, 16 clubes abriram mão desses R$ 5 milhões para conseguirem empréstimos bancários. Em contrapartida, o Grupo Globo diminuiu o valor fixo coletivo para R$ 100 milhões. Ao mesmo tempo, quatro clubes não entram no acordo e ainda têm os R$ 5 milhões (no total, R$ 20 milhões para os quatro) garantidos.
Em suma, se antes os 20 clubes teriam R$ 100 milhões para distribuir, agora restam somente R$ 80 milhões. Suponhamos que esse restante fosse dividido igualmente: um clube que antes receberia R$ 5 milhões, após as mudanças ganharia somente R$ 4 milhões. Além disso, aqueles quatro clubes ainda teriam os R$ 5 milhões garantidos. Com isso, a diferença final seria de R$ 9 milhões para R$ 4 milhões entre os clubes.
A polêmica do PPV
Flamengo não sofrerá grandes impactos em uma nova divisão na Libra. De fato, o clube vai perder verba, mas serão valores irrisórios frente às arrecadações de cada um. No caso do Rubro-Negro, será de 4,5% da sua receita. Ou seja, quem perde efetivamente? Depende do ponto de vista.
Se para alguns perder é ganhar concorrentes no âmbito esportivo, aí diversos clubes serão perdedores. Nessa caso, serão os clubes grandes com dificuldade financeira de Sul e Sudeste. O Sócio Honorário do Flamengo, Alexandre Rangel, falou sobre essa questão em seu perfil pessoal no Twitter:
“No modelo (…) proposto (da Libra), um clube como o Flamengo perde cerca de R$ 50 milhões nos valores atuais (4,5% da receita de R$ 1,1 bilhão). Clubes como Botafogo ou Fluminense ganham cerca de R$ 15 milhões (aproximadamente 6% a 10% da receita).
Na verdade os grandes ganhadores da redistribuição do PPV serão os mesmos que ganharam com o modelo inglês de distribuição de TV aberta e fechada: os clubes do Nordeste, Norte e do Centro-Oeste. E os grandes perdedores serão o trio de clubes do Rio de Janeiro (Fluminense, Botafogo e Vasco) e de Minas Gerais (Atlético-MG, Cruzeiro e América-MG); um pouco do Rio Grande do Sul (Grêmio e Internacional). Na prática nada afetará (os quatro grandes de) São Paulo e Flamengo.
(…) Antes de começar o modelo inglês, previmos que isso traria um ganho de competitividade enorme aos clubes do Nordeste e Centro-Oeste (mais o Athletico) sobre os clubes mais fragilizados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. E contra-intuitivamente, deixaria o trio paulista e Fla mais fortes.
E não à toa, clubes como Botafogo, Vasco, Cruzeiro e mesmo o Galo pré-4Rs (referência aos mecenas do clube) tiveram sérios problemas de competir na Série A com clubes ‘pequenos’ no modelos mais distribuído. Isso porque a grande desigualdade de TV no Brasil sempre foi entre os clubes do Sudeste frente ao resto do Brasil.
Por isso acho que não haverá dificuldade de aprovação da Liga por conta do PPV: porque clubes de São Paulo e Flamengo sabem que vão ganhar mais com o crescimento do bolo; os clubes pequenos sabem que vão saltar de menos de 1% para algo quatro vezes maior; e os clubes de Minas Gerais e Rio de Janeiro olham na direção errada (novamente).
E só para dar mais dados: o PPV hoje gera cerca de R$ 600 milhões em um bolo a ser dividido por 40 clubes. É algo como 15% da receita do futebol e vem decaindo. Qualquer modelo de distribuição meritocrático com (base em) porcentagem de assinantes, audiência e igualitário, dividido por 40, no fim não vai gerar nada que muda as finanças.
Hoje ele é 100% dividido pela porcentagem de assinantes (um ‘ingresso remoto’). Uma evolução do passado, que era por pesquisa de torcida nas capitais e que prejudicava muito os times do Nordeste e do interior.
Argumento de “ingresso remoto” é valido para se você comprar só os jogos do seu time, mas…
Como se compra o campeonato, sempre houve a discussão de colocar de 30% a 50% na venda do ‘pacote completo de PPV’ para um fundo de distribuição igual. Ou seja, debate de até 20% de R$ 600 milhões (R$ 120 milhões) para dividir por 40. Só muda a vida de quem hoje já não ganha pela pouca torcida (por exemplo, Athletico).
E complementando, acho que o conceito de ingresso remoto faz sentido se existir pacotes só para os jogos do seu clube. Nesse caso 90% a 100% deveria ficar só com o clube do assinante.
Mas de comprar todos os jogos de todos os clubes é justo ter de 30% a 50% reatável.
Uma parcela grande de pessoas físicas compraria só o seu time. Mas temos que lembrar das compras por estabelecimentos, bares e restaurantes, que inclusive pagam mais caro, que podem comprar todo o campeonato, ou só os times do estado ou os times do estado, mais os de interesse nacional.
Isso mostra como a modelagem é complexa. Importante é:
- PPV não é causa, nem solução para concentração de renda;
- PPV não será um problema para Liga, os grandes (mais 8% de torcida) e pequenos (menos que 2%) sempre vão ganhar em qualquer modelo;
- Times com 2% a 8% de torcida em qualquer o modelo, vão perder;
- E principalmente, mais importante que o PPV é estabelecer regras claras de fairplay financeiro (limite de déficit), combate ao doping financeiro (lavagem de dinheiro ilegal) e a competição desleal (quem não paga salários, nem impostos) contra times organizados.”