Quase tudo que consideramos impossível de reduzir a números pode ser quantificado, bastando a nós nos livramos das amarras convencionais e de alguns escrúpulos de consciência.
Em dezembro de 1983, a Taça Jules Rimet, conquistada pela seleção brasileira 13 anos antes na Copa do Mundo do México, foi roubada da sede da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), na Rua da Alfândega, no Rio de Janeiro. Na mesma cidade, quase trinta anos depois, em outubro de 2013, ladrões levaram seis colossais vigas do recém-demolido Elevado da Perimetral, uma bagatela de 120 toneladas, butim de um material tão resistente que, se calhar, servirá de abrigo a baratas depois do Juízo Final. Anos depois, sumiu numa madrugada de sexta-feira para Sábado de Carnaval o que gente razoável, atida a critérios estritos de plausibilidade, jamais imaginaria: o Estádio Mario Filho, o Maracanã. Mas isso importa menos do que a circunstância de que corriam, àquela época, os últimos dias de Xavier.
Quando saiu o diagnóstico, Xavier imaginou que ainda pudesse ser Xavier. Não foi bem assim. De tantos exames, de tão persistente mal-estar, o viúvo de 72 anos de idade viu sua velha rotina ir embora. No lugar de um roteiro diário entre os polos da casa e da rua, a vida daquele contador que resistia à aposentadoria se convertera numa viagem sem bússola por arquipélagos de consultórios e laboratórios. Como costuma acontecer em meio a turbilhões como o de um câncer, Xavier descobriu que, com a quebra da sequência de pequenos e grandes atos do cotidiano, quem se perdia era a ideia que tinha de si mesmo.
Na trajetória desse perder-se, um marco veio numa frase encerrada com “dignidade”. “O importante é que tudo corra com dignidade” – saiu da boca do seu médico particular, numa consulta a que foi acompanhado de sua filha. “O im-por-tan-te é que tu-do cor-ra com di-gni-da-de”, dezesseis sílabas, o suficiente para Xavier encomendar por si a própria alma. Até ali, nem a malignidade dos tumores, nem mesmo as pequenas chances de remissão, tampouco a ineficiência dos tratamentos convencionais, das terapias em teste e também das investidas heroicas, menos ainda a profusão de segundas, terceiras e quartas opiniões, nada era capaz de romper Xavier mais dos que os próprios sintomas, já brabos o suficiente.
Quando a “dignidade” raiou em feitio de sentença, Xavier se moveu: abandonou o pessimismo preventivo que, mesmo antes da doença, constituía sua segunda natureza, em prol de uma aceitação plena de seu “quê” e de seu “como”, ficando apenas à espera do “quando”. Sem saber o porquê, pensou também em rebater mensagens que nunca tinha respondido.
Foi nessa altura que Xavier decidiu ver seu time no estádio, logo na primeira partida possível, que vinha a ser a última antes do Carnaval. Um amigo arranjou os ingressos – “de arquibancada, óbvio”, conforme Xavier tinha indicado.
E foi. Escorado ora no filho ora da filha, subiu a rampa intuindo a última vez. E o que enxerga um homem quando sabe presenciar algo de forma derradeira? Não há exercício de imaginação capaz de dar conta de uma peça encenada numa única oportunidade, num palco reservado para a audiência de um só. Mesmo assim, podemos especular.
Quando entrou pelo túnel de acesso, topando com a mandíbula oval e joiada do Maracanã sob a luz dos refletores num jogo noturno de quarta-feira, Xavier pensou num abismo que sussurra. Ao se sentar ao lado de um pai acompanhado pelas duas filhas, lembrou de anos antes, da vez que precisou deixar um clássico no meio pelo fato do filho ter comido todos os sorvetes imagináveis e alcançáveis, passando mal na arquibancada. Mirou acima, viu a lona do estádio em sua nova encarnação, rememorou a marquise antiga, aquela que gritava CATEDRAL ou, ainda melhor, PERMANÊNCIA – a marquise já fantasma, demolida entre 2011 e 2012. Na entrada de seu time em campo, meditou rapidamente se jamais fora apropriado dizer que “era Flamengo”, dado que o Flamengo, pesando tudo, vinha antes de ele conjugar o verbo “ser”, oferecendo condição prévia para que dissesse “estou aqui”, “sou uma pessoa” e, mesmo, “quero viver”; para Xavier, primeiro vinha o Flamengo, por cima de qualquer formulação cartesiana, antecedendo cogito e sum, “penso” e “sou” – e quem poderia dizer que Xavier exagerasse? A torcida gritou alto; Xavier resgatou de algum canto de sua cabeça já raspada a recordação de uma reunião de trabalho em que se viu cercado por colegas que não entendiam o apelo do futebol e de como, então, vira seu discurso escapar ao buscar uma explicação para seu fanatismo no “social”, no “cultural” e no “psicológico”. A bola rolou; Xavier formulou consigo a tese de que, como o futebol enredava a fibra da sua vida, não podia explicá-lo como um fenômeno à parte. Seu time acertou a trave, logo no primeiro lance de ataque, um “uh” coletivo subiu; Xavier se reviu de camisa rubro-negra diante do espelho de corpo inteiro no quarto de seus pais, criança, pé direito sobre a bola, análoga em seus aspectos fundamentais à que rolava em campo, sem ponta, lado ou cabeça, de imprevisível caminho. Em campo, o Flamengo prosseguia numa daquelas jornadas de gritar com os pés a sua identidade de turbilhão; Xavier imaginou uma rua que nunca visitou, uma via barulhenta com um bar no meio juntando gente para ver o jogo que ele acompanhava no Maracanã. Um chute de primeira, de fora da área, gol, um urro coletivo (o Flamengo amalgamado à sua torcida irrompendo com estrondo); Xavier jurou distinguir em meio à vogal perdida que só pode se berrada por uma massa em alívio um coro de fundo, feito dos “sins” da sua falecida esposa, do “sim” no primeiro encontro ao “sim” na despedida dela num leito de hospital, sins íntimos, sins públicos, todos cantados ali em mesma nota. Os filhos de Xavier o abraçaram no maior abraço do mundo; Xavier se percebeu vivo ou algo além, sobrevivo à exposição a algo divino, como ao brilho da sarça ardente. O Flamengo resistiu à pressão, com o goleiro, com a sorte, com a ineficiência alheia, o juiz apitou o final do jogo, 1×0; Xavier igualou o fluir da experiência que atravessava ali, no Maracanã, ao fluir singular, seu, da festa do seu casamento, do nascimento de seus dois filhos e das cirurgias que atravessara mais recentemente, ocasiões capitais em que o tempo saltou diante de seus olhos, produzindo no intervalo entre um pulo e outro elipses instantâneas, fabricando num só movimento memória e esquecimento com efeito instantâneo. Rumo à saída, descida da rampa, Xavier desmaiou.
Da Taça Jules Rimet, pelo menos, soube-se que acabou derretida – por suprema ironia, pelas mãos de um ourives argentino. Das vigas da Perimetral, nem do modo de descarte teve-se a precisa noção. Do Maracanã, ficou difícil conceber quaisquer detalhes para além do evento concreto do sumiço do estádio de uma sexta-feira para Sábado de Carnaval, sem testemunhas, em meio a um apagão geral das câmeras de segurança e de trânsito. “Você viu que o Maracanã sumiu?” – em quantas casas, esquinas, coletivos, balcões e furdunços pela cidade já entregue a Momo não chegou alguém perguntando isso pela manhã, para ouvir a seguinte resposta em meio ao batuque dos blocos ou ao silêncio dos retiros anticarnavalescos, com poucas variações: “O Rio é/tá foda!”?
Como a taça e as vigas, o sumiço do Maracanã percorreu em breve curso a partir da manhã do Sábado de Carnaval as estações do assombro instantâneo, da tomada de “providências” e da piada. No Rio de Janeiro – trata-se isso de um dado—, absorve-se em 48 horas o que implora por semanas, meses e anos em outras paragens. Nesta cidade onde o noticiário reporta em realismo fantástico, não foi tanto o efeito (o sumiço do Maracanã) que acabou eletrizando os cariocas, e sim o debate sobre as causas, os meios e os virtuais paradeiros do gigante de concreto armado.
O terreno baldio do Maracanã virou paisagem de um dia para o outro, restituído a um estado em que não se encontrava desde antes do velho Derby Club, e o que restou, lá pela Segunda-Feira de Carnaval, para além do antigo Museu do Índio, não era mais bem perplexidade, mas uma inquietação de engenheiros do absurdo, do tipo “como transportaram essa tralha toda?” – e só.
Na Terça-Feira Gorda, Xavier acordou numa cama de hospital. Intubado, não conseguia falar. Depois das mãos enluvadas da enfermeira, o segundo que viu foram os olhos da sua filha, lacrimejando. Ouviu dela sobre o que se passara entre seu desmaio na rampa e aquele instante de recobrar da consciência no hospital, completando: “e, pai, você não sabe da maior: nesse tempo que você ficou aqui, o Maracanã sumiu.” Xavier escancarou os olhos numa surpresa que durou pouco. Como o resto da cidade, não se espantou tanto com o acontecido em si. Fechou os olhos. Descobriu consigo, sozinho, o segredo sobre o paradeiro do estádio: o Maracanã, agora, morava dentro da sua cabeça. Morreu certo disso.
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Lançamento na Livraria Folha Seca
No dia 14/09, um sábado, a partir das 13h, tem o lançamento na Livraria Folha Seca, no Centro. Terá roda de samba no contexto.
SERVIÇO
Quando: 14/09 a partir das 13h
Onde: Livraria Folha Seca — Rua do Ouvidor, 37, Centro
David Butter é jornalista formado pela Escola de Comunicação da UFRJ e mestre em Religião na Sociedade Contemporânea pelo King’s College de Londres. Atuou na televisão e no digital como editor, produtor, comentarista e diretor em empresas como a TV Globo. Além de ser destinado ao Flamengo e à Portela, é nascido numa família de médicos e de comerciantes de artigos de Carnaval (dentre outros itens).