Falar de Milton Queirós da Paixão, o Tita, entre rubro-negros é um tema espinhoso. Embora tenha feito parte da geração mais vitoriosa e festejada do Flamengo em todos os tempos, o meia-atacante – que completa 60 anos neste domingo – costuma ser visto com certa reserva por muitos torcedores. Não é difícil entender os motivos dessa rejeição, como veremos. Mas também não é justo esquecer o papel importante que desempenhou na Era de Ouro do clube, assim como seus momentos de protagonismo em campo, fosse com base na técnica ou na garra que sempre demonstrou vestindo vermelho e preto.
Desde o início da carreira, Tita sempre teve como meta vestir a camisa 10 do time profissional do Flamengo, a mesma que vestia nos juvenis. E isso mesmo com Zico sendo o dono inquestionável do trono de Rei rubro-negro. Reclamava com frequência por atuar fora de sua posição (perambulou pelas duas pontas, pelo miolo do ataque e jogou até como segundo homem do meio-campo, até se fixar com a camisa 7), o que, junto com sua obsessão com o posto do Galinho causou um certo mal-estar na Gávea durante muito tempo.
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Mas o que seria decisivo em queimar para sempre o filme do jogador com muitos torcedores do Fla foi sua ida para o Vasco no início de 1987, após passagem de um ano e meio pelo Internacional. E pior: em agosto daquele ano, marcaria o gol do título carioca dos cruzmaltinos contra o clube que o revelou. Estava então irremediavelmente tachado de “traidor” e de “vascaíno” (quando sempre afirmou ser Flamengo desde a infância) por muitos rubro-negros. O fato de ter voltado ao Vasco para uma segunda passagem como jogador (entre 1989 e 1990) e de, mais tarde, assumir cargos na comissão técnica – inclusive treinador – do rival deixaria para sempre a certeza de que havia “se bandeado” para os lados de lá.
Entretanto, é preciso fazer justiça ao jogador que era este carioca da Tijuca, e ao que fez de grande em sua carreira no Flamengo. Tita era um meia-atacante de ótima qualidade técnica, bom nos passes curtos e longos. Como Zico, era ótimo cobrador de faltas. E ainda contava com uma característica raramente citada quando se fala de seu futebol: era ótimo no jogo aéreo. Sua cabeçada era precisa como uma tacada de sinuca dos grandes mestres, ao mesmo tempo forte e colocada, como comprovam seus inúmeros gols (golaços, inclusive) utilizando-se do fundamento.
Se não tinha a mesma visão de jogo e o mesmo talento acima da média para resolver as jogadas num lampejo como o Galinho (o que seria especialmente notado em sua segunda passagem pela Gávea), compensava sendo um batalhador incansável em campo, sempre raçudo, combativo, aguerrido (às vezes até um pouco demais, como não se cansavam de afirmar seus detratores). Corria por todo o campo fechando espaços, recuperando bolas. Sair de campo com a camisa limpa, sem suor, era impensável.
No Flamengo campeão de tudo (Carioca, Libertadores, Mundial e Brasileiro) na virada de 1981 para 1982, tinha enorme importância tática. Embora vestisse a camisa 7, mas não como ponta autêntico – desses que jogam abertos, isolados, correndo com a bola até a linha de fundo antes de cruzar para a área. Pelo contrário: fechava pelo meio, abrindo o corredor por onde passava Leandro – de modo que foi fundamental para que este pudesse fazer seu jogo ofensivo aparecer. E ao centralizar, Tita atuava mais perto de Zico e de Nunes, aproximando-se de sua posição de origem.
E o primeiro grande momento de Tita no time rubro-negro foi jogando em sua posição de origem, em 1979. Campeão carioca de 1978 e vencedor invicto do chamado Campeonato Especial, disputado entre fevereiro e abril de 1979, o Fla buscava chegar ao tri vencendo também o inchado Estadual daquele ano, que reuniu 18 clubes em três turnos entre maio e novembro. Faturou a Taça Guanabara com dois jogos de antecipação, mas no segundo turno sofreu um abalo aparentemente irreparável.
Na antepenúltima rodada do returno, o Flamengo em situação desfavorável na tabela disputava um jogo duríssimo contra o Goytacaz em Campos. No segundo tempo, numa disputa de bola, Zico sofreu estiramento na coxa direita e teve de deixar o campo. Feitos os exames, veio a confirmação: O Galinho – que até ali somava absurdos 34 gols marcados em 24 jogos naquele Estadual – estava fora dos próximos jogos do turno, talvez até do campeonato. Mas o Fla obteve vitória importante por 1 a 0. Gol de Tita.
O aspirante a 10 da Gávea foi prontamente apontado pelo técnico Cláudio Coutinho como o substituto de Zico pelo tempo que durasse a recuperação do ídolo rubro-negro. Era a chance que Tita aguardava para provar seu valor. No jogo seguinte, contra o Botafogo, o Fla foi melhor em todo o jogo, mas, como no jogo do primeiro turno, viu-se atrás no marcador com gol de Renato Sá. Felizmente, porém, o desfecho seria diferente desta vez: Tita sofreu falta e, da cobrança, nasceu o gol de empate, de Cláudio Adão. E, nos acréscimos, o novo dono da 10 aproveitou-se de uma indecisão da defesa alvinegra para tomar a bola de Manfrini e chutar para defesa parcial de Ubirajara. No rebote, Adão balançou de novo as redes, decretando a virada emblemática.
Era seu cartão de visitas para o jogo da última rodada, contra o Fluminense. O Fla agora precisava do empate, mas os tricolores, que tinham Nunes no comando do ataque, partiram para cima. O jogo, porém, foi decidido no fim, aos 42 minutos. E a favor do Fla. Num contra-ataque, Adílio desceu pela direita e rolou para Tita, que chutou prensado, mas vencendo o goleiro Paulo Goulart. A vitória confirmou o título do segundo turno (o sexto consecutivo vencido pelos rubro-negros nos três últimos cariocas) e também a conquista do segundo ponto extra para a disputa do terceiro e decisivo turno, que começaria logo em seguida, ainda com o desfalque de Zico.
Nos três jogos seguintes, Tita abriria o placar nos 3 a 0 sobre a Portuguesa da Ilha, marcaria duas vezes nos 5 a 1 sobre o Goytacaz e faria o único gol numa difícil vitória sobre o Bangu. Não foi, no entanto, um turno de vitórias do início ao fim. Com recuperação apressada pelos médicos, Zico foi relacionado para o banco na próxima partida, outro Fla-Flu. Entrou no segundo tempo sem condições físicas para tentar reverter uma desvantagem de dois gols, mas perdeu um pênalti, e o Fla jogou fora os dois pontos de bonificação.
Apesar da clara demonstração de ainda não estar recuperado, Zico foi novamente relacionado e agora escalado de saída no jogo contra o Americano. Mas saiu no intervalo, por precaução, dando lugar ao ponteiro Reinaldo. Tita, vestindo a 7, foi passado novamente para a ponta de lança. Autor do único gol do primeiro tempo, em tabela com o Galinho, ele completou a tranquila vitória marcando mais duas vezes na etapa final, primeiro de cabeça e depois matando no peito antes de fuzilar o goleiro Paulo Sérgio. Para o Jornal do Brasil, ele foi “o destaque do jogo, não só pelos gols, como também pelo desembaraço”.
“Desembaraço”, aliás, é uma ótima palavra para descrever a principal qualidade de Tita dentro daquela equipe. Em meio a jogadores de excelente qualidade técnica, mas sempre propensos a um toque ou drible a mais, ele era o senso prático, a objetividade. E ela seria de grande valia na partida seguinte, a penúltima, contra o Vasco na tarde de 28 de outubro. Era o jogo que poderia encaminhar o título do turno (e, por conseguinte, o tricampeonato carioca) para a Gávea. Em caso de vitória, eram boas as chances de os rubro-negros já entrarem de faixa no último jogo, contra o Botafogo.
O Flamengo saiu matando e abriu o placar logo aos 11 minutos. Júlio César, o “Uri Geller”, foi lançado em profundidade na ponta esquerda, avançou e cruzou para a área. Afobado, o zagueiro Ivã se antecipou a Claudio Adão e, de carrinho, mandou a bola para as próprias redes. Logo depois, na jogada que terminaria no segundo gol, um exemplo da diferença de estilo de Tita. Júlio César e Cláudio Adão entraram tabelando na área, mas ambos se complicaram justo na hora de concluir, perdendo chance incrível. A zaga vascaína afastou e a bola sobrou para o ponteiro Reinaldo, que mandou um chute venenoso defendido apenas parcialmente por Leão. Tita não quis nem saber: na raça, meteu o pé na bola para dentro das redes.
O Vasco reagiu ainda no primeiro tempo em duas cochiladas rubro-negras. A tensão tomou conta do Maracanã, e a definição do campeonato ficou em suspenso durante boa parte do segundo tempo. Até que, após uma cobrança de escanteio pelo Fla que saiu da esquerda e rodou até à meia direita, a bola parou nos pés do lateral Toninho. O baiano avançou alguns passos e, quase de lá mesmo, alçou a bola sobre a área. E o que se seguiu foi um dos gols de cabeça mais plasticamente impressionantes e marcantes da história do Maracanã. Tita, quase da risca da grande área, subiu e pairou no ar. Sua testada encobriu Leão e morreu no canto oposto, no fundo das redes vascaínas. E o Flamengo começou a vestir as faixas.
O título acabou confirmado na véspera da partida com o Botafogo, após uma vitória cruzmaltina sobre o Fluminense. Lesionado, Tita não enfrentou o Alvinegro. Mas sua enorme contribuição já estava eternizada. Foram 11 gols nos nove jogos anteriores. Quase todos que deram vitórias. E o garoto de 21 anos se sentiu realizado ao perceber que, com ele, por aqueles momentos, a torcida nem sentiu falta de Zico.
Nos anos seguintes, Tita daria diversas outras demonstrações de raça e bom futebol. No Brasileiro de 1980, o Fla se vingou do Palmeiras, que havia eliminado o time de Coutinho no ano anterior com uma goleada de 4 a 1 em pleno Maracanã. Na revanche, um memorável massacre por 6 a 2, Tita marcou o primeiro e o quinto gols. E tornou-se o símbolo da desforra ao atravessar quase toda a extensão do campo para acenar em despedida, com um sorriso de satisfação nos lábios, à torcida palmeirense.
Entre outros grandes momentos, estão o gol feito na raça contra o Atlético-MG pela primeira fase da Libertadores de 1981, no empate em 2 a 2 no Maracanã. A cabeçada que iniciou a reação num complicado jogo contra o Santos, também no Maracanã, nas quartas de final do Brasileiro de 1982. E os dois gols da virada (um deles, em outra cabeçada magnífica) no eletrizante Fla-Flu da Taça Rio de 1983, pouco depois de ter retornado ao clube com a missão de, enfim, vestir a 10 e ostentar a braçadeira de capitão com a venda de Zico para a Udinese.
Tita deixou o Flamengo em definitivo em setembro de 1985, negociado com o Internacional – embora tenha manifestado não querer se transferir para outra equipe brasileira. Saía de vez do clube pelo qual torcia e que o revelara depois de atuar em 389 jogos e marcar 135 gols. Só voltaria a vestir rubro-negro em jogos festivos, como as despedidas de Zico e Nunes, mas recebendo mais hostilidades do que aplausos.
Sua história de vitórias, conquistas, raça e bom futebol no Flamengo é inegável e indelével. E não deve ser eclipsada pelo que tenha feito depois. Foi parte importante de uma inesquecível geração. Está lá na história por cada bola dividida, cada cabeçada certeira, cada cobrança de falta precisa. Cada gota de suor no manto rubro-negro.
Imagem destacada no post e redes sociais: Reprodução
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Emmanuel do Valle é jornalista e pesquisador sobre a história do futebol brasileiro e mundial, e entende que a do Flamengo é grandiosa demais para ficar esquecida na estante. Dono do blog Flamengo Alternativo, também colabora com o site Trivela, além de escrever toda sexta no Mundo Rubro Negro.
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