Tempo de recomeço.
O final da temporada anterior, com efeito, revelou-se frustrante, melancólico e deprimente. O Flamengo disputava, ponto a ponto, a liderança do campeonato, aí rebentou a epidemia da peste. Da gripe espanhola, que semeou o terror em toda a população do Brasil e do mundo. Que matou, somente no Rio de Janeiro, cerca de 17 mil pessoas, incluindo o Presidente da República, Rodrigues Alves. Que levou vários esportistas, sendo os mais célebres o meia French, do Fluminense e o atacante Cantuária, principal jogador do São Cristóvão, entre outros esportistas de diversos clubes. Como se não bastasse o inferno da gripe, o futebol carioca ainda perdeu Belfort Duarte, zagueiro e símbolo do América, assassinado em uma disputa de terras no interior do Rio. E tudo parou dois meses. E depois de dois meses tudo voltou. E o Flamengo voltou desfigurado, desmotivado, desmobilizado. E jogou cinco partidas. E perdeu as cinco. Quase sem jogadores para colocar em campo.
Mas isso ficou para trás. Estamos em 1919, o momento é de olhar para a frente. Voltar a viver.
O Flamengo apresenta novidades para a temporada. O ponta-esquerda Junqueira, que acaba de conquistar o Campeonato Paulista pelo CA Paulistano, agora passa a residir na Capital Federal, onde irá trabalhar em uma Agência Bancária. Com isso, transfere-se para o rubro-negro, que mantém boas relações com o clube paulista. Além de Junqueira, outra ótima notícia surge com a confirmação do retorno, para o Brasil, do center-half (volante) Sidney Pullen, que, com o fim da Primeira Guerra (onde lutara como soldado inglês), é liberado para voltar às suas atividades regulares no país. O Flamengo volta a contar com seu principal jogador, após um ano de ausência.
É verdade que há baixas, ambas no gol. O titular Hydarnés, que anos antes causara furor ao trocar o Botafogo pelo Flamengo (movimento raro nesses tempos de amadorismo), deixa o clube, pois irá trabalhar em uma conceituada casa comercial de Porto Alegre. E o reserva imediato Magalhães (que se tornará conhecido, anos mais tarde, por compor o Hino Oficial do Flamengo) está internado, convalescendo de grave infecção tetânica, e ficará fora de ação por alguns meses. Mesmo assim, o sentimento é de confiança e otimismo para o ano que se inicia.
Mas antes do ano se iniciar propriamente, há o Campeonato Sul-Americano de Seleções, simplesmente o maior evento esportivo realizado no Brasil até então. Para sua disputa inaugura-se o Stadium das Laranjeiras, para cerca de 20 mil pessoas, que registra superlotação em todos os jogos do scratch brasileiro. O Brasil, que monta uma seleção com os melhores jogadores cariocas e paulistas (o que não é comum na época), realiza campeonato primoroso e conquista, pela primeira vez em sua história, o título, ao vencer o Uruguai por 1-0 na final, gol de Friendereich aos 3′ da SEGUNDA prorrogação. A conquista faz rebentar um verdadeiro carnaval na cidade, que assim expia e exorciza os fantasmas das desgraças recentes. Está em festa.
E é em festa que o carioca vai acompanhar, com a motivação nas alturas, o início do Campeonato Carioca, já em JUNHO. A rodada de abertura assinala o confronto entre Botafogo x Flamengo, em General Severiano.
Os dois clubes andam se estranhando. O Botafogo ainda não engoliu a perda do goleiro Hydarnés para o rival, três temporadas antes. Ademais, recentes querelas nos bastidores da Liga têm cristalizado posições distintas, de antagonismo, entre ambos. Enfim, a abertura do Campeonato é o tal jogo que ninguém quererá perder.
O retrospecto recente traz resultados agudos. Um empate, uma vitória por 3-0 do Botafogo em plena Rua Paysandu e um sonoro 5-1 do Flamengo em um amistoso no campo do Carioca FC, na Gávea, que os alvinegros ainda não esqueceram.
O Flamengo traz mais uma novidade. O right-forward (equivalente ao camisa 8) Candiota faz sua estreia em jogos oficiais, sendo mais um reforço do rubro-negro para o Campeonato.
Um lindo dia de sol derrama uma vistosa luminosidade sobre as arquibancadas de General Severiano, que está completamente lotada. Uma multidão contorce-se em filas na vã esperança de conseguir uma nesga de espaço dentro da praça de esportes. 1919, definitivamente, assinalará a afirmação do futebol como esporte de massa (em que pese um caráter ainda elitista de parte do público). Jogadores de Botafogo e Flamengo entram no gramado recebido como estrelas.
O jogo, em si, a rigor, dura 40 minutos.
Na primeira etapa ainda há luta. O Flamengo joga melhor e toma a iniciativa, mas o Botafogo ainda consegue resistir e fustigar em contragolpes. O ponta-direita Álvaro Galvão Bueno faz bela jogada e, após bate-rebate, abre o placar para o rubro-negro. Pouco depois, o Botafogo empata, num gol do atacante Menezes. Seguem-se várias chances criadas lado a lado (o alvinegro chega a acertar a trave flamenga) e o jogo se torna emocionante, tirando o fôlego do público.
Mas dizem que há coisas que só acontecem com o Botafogo. Talvez um exagero de quem queira justificar o grande número de reveses, talvez algum complexo de perseguição embutido em um derrotismo mal-disfarçado, talvez algum misticismo ou mesmo talvez apenas uma frase espirituosa. Seja qual for a motivação que lhe tenha criado, o adágio cabe perfeitamente para descrever o lance do segundo gol do Flamengo. Galvão Bueno, em grande partida, novamente faz um carnaval pela direita e cruza rasteiro. O center-forward (centroavante) Carneiro arremata cruzado, para bela defesa do goleiro Abreu, com o pé. Mas a bola rebatida por Abreu vai dar às costas do próprio Carneiro, que já se virara abandonando o lance, e ripilica mansinho pra dentro do gol, roçando quase sem querer as redes botafoguenses. O Flamengo faz 2-1.
E termina o primeiro tempo. E, na prática, termina o jogo. Agora vai começar o massacre.
O Botafogo, no desespero e no afã de reconquistar a igualdade, avança em demasia suas linhas. E luta. E briga ao limite de suas forças. E cansa. Exangues, seus jogadores não conseguem mais acompanhar o ritmo ora cadenciado, ora alucinado, imposto pela técnica superior do onze flamengo.
E os gols começam a acontecer.
A zaga flamenga dá um chutão pro contragolpe. Carneiro ganha na corrida mas o goleiro Abreu se antecipa e sai do gol, agarrando a bola. Mas tropeça e, numa falha sensacional, solta a pelota novamente nos pés de Carneiro, que só empurra pro gol vazio. Flamengo 3-1.
Novo chutão da zaga, agora para Galvão Bueno, que arranca pela direita e cruza para o left-forward (Camisa 10) Dias, que não perdoa. Flamengo 4-1.
O Flamengo relaxa e permite ao adversário trocar passes e mesmo arriscar chutes ao gol. Num desses arremates, o atacante alvinegro Vadinho acerta o ângulo do goleiro Zé Pinha Laport, diminuindo o marcador. O Flamengo agora vence por 4-2. A torcida no estádio insufla os locais, em busca do improvável empate.
Vã e efêmera ilusão. O Flamengo troca passes pela direita. A bola vai ao encontro de Candiota, que se livra de um, de dois e manda uma varada na gaveta. Flamengo 5-2.
O Botafogo se recusa a recuar para evitar um desastre maior. E segue sendo ferido. Mais um chutão da defesa flamenga encontra Carneiro inteiramente livre no campo de ataque. O forward avança e alça a bola na área, procurando Dias. Antevendo o lance, Abreu deixa o gol, esperando que Dias domine a bola para dar o bote. Mas Dias, vendo o goleiro no meio do caminho, acerta uma desmoralizante cabeçada por cobertura, fazendo a bola entrar de mansinho no gol do infeliz goleiro, que apenas assiste, inerte, impotente. Botafogo 2, Flamengo 6.
E nada mais que seja digno de registro acontece dentro das quatro linhas.
A escovada terá efeitos. Os do Flamengo, como sempre, entregam-se a um ruidoso reco-reco na sede, celebrando mais uma contundente vitória. Os jornais, normalmente simpáticos aos botafogos e aos fluminenses, enxergam três gols irregulares do rubro-negro e minimizam o feito flamengo, coalhando-o de relativizações (“não foi um espetáculo de qualidade”, “o início de temporada mostrou deficiências no ‘training’ das duas equipes”, “o árbitro não se mostrou à altura da responsabilidade”, entre outros petardos). No entanto, mais nociva do que a reação da imprensa em geral é a forma com que o Botafogo lida com a derrota, recusando-se a aceitá-la com fidalguia ou espírito esportivo.
Ao contrário, o Botafogo cisma. Quer porque quer anular o jogo.
Alega que o meia Candiota não cumprira o tempo requerido de 30 dias após a inscrição, para adquirir condições de jogo. No entanto, o Flamengo pontua ter realizado uma inscrição provisória, e que o tempo teria passado a contar a partir desse prazo, seguindo a orientação da LMDT (Federação). A posição rubro-negra é robustecida com um documento formal, assinado por um representante legal da LMDT, ratificando que Candiota reunia, sim, condições de jogo, sendo válida a argumentação do clube. Ou seja, o Flamengo colocou para jogar um atleta autorizado formalmente pela Federação. Mas nada disso convence os dirigentes do Botafogo, que se articulam para invalidar o documento da LMDT.
E assim na reunião ordinária da Liga, para ratificar os resultados da rodada, um representante do Villa Isabel FC, clube aliado do Botafogo, apresenta uma proposta de anulação da partida, tendo em vista que o jogador do Flamengo se encontrava em suposta condição irregular, e que a autorização da Federação não é suficiente para tornar válida a partida. Dessa forma, entende ser necessária a anulação do resultado do jogo, definindo-se, posteriormente, se os pontos serão revertidos ao Botafogo ou se será necessária a realização de novo cotejo.
E a proposta é aprovada, por seis votos a três. O jogo está anulado.
No entanto, o Flamengo apresenta veemente protesto, uma vez que a Sessão Ordinária da Liga não tem, segundo o rubro-negro, poderes para tomar uma decisão desse nível de gravidade. Que resultados somente podem ser anulados ou reformados pelo Conselho Superior da Liga. E, de imediato, sua diretoria informa que o clube irá recorrer ao Conselho.
A manobra do Botafogo se justifica. O Conselho, formado por dirigentes mais tradicionais e ligados à letra fria de leis e regulamentos, dificilmente seguiria de chofre a posição alvinegra. Era necessário conseguir uma maioria na Assembléia Ordinária, algo bem mais viável (o Botafogo é próximo a clubes mais modestos, como Villa Isabel, Andarahy e São Cristóvão) para criar uma sensação de legitimidade à sua demanda. O alvinegro conta com a receptividade dos jornais para pressionar o Conselho a manter a decisão da anulação.
No entanto, a repercussão é ruim. Alguns jornais falam em “vergonha” e “imoralidade” de um clube que tenta reverter fora do campo o fiasco apresentado dentro das quatro linhas. Os do Flamengo, sempre irreverentes, falam em “esperneio” e “choradeira”. “E se houver novo match irão levar de seis de novo”. Em off, alguns membros do Conselho demonstram certa irritação com a “pernada” da Assembléia, que se meteu em matéria de sua exclusiva jurisdição.
Assim, o Conselho se reúne para apreciar o recurso do Flamengo. E, por 7 votos a 1, devolve os pontos do jogo ao Flamengo. E o rubro-negro tem confirmada sua vitória dentro de campo.
A decisão é recebida com indiferença pelos jogadores. Afinal de contas, o time segue em preparação para o difícil encontro com o América.
Que, dentro de campo, promete ser feroz.
Adriano Melo escreve seus Alfarrábios todas as quartas-feiras aqui no MRN e também no Buteco do Flamengo. Siga-o no Twitter: @Adrianomelo72
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