Já se vão altas horas dentro desta noite de segunda-feira de abril de 1995. Tensos diante da televisão com a desvantagem de 3 a 1 no placar perto do fim do jogo contra um Volta Redonda que não dá espaços e não pretende entregar os pontos tão facilmente, os dois irmãos rubro-negros roem as unhas, aflitos. Impaciente, um deles, o mais velho, decide ir à cozinha beber um gole d’água para acalmar a tensão.
E de lá ouve o grito do mais novo, que reverbera como um estampido no ar, como se fosse uma palavra só, de tão inacreditável: “Gol! Charles Guerreiro!”. Num pé só, tendo de se segurar no batente da porta ao chegar na sala para não escorregar, o mais velho arregala os olhos e pergunta esbaforido: “O quê?!?”. “É isso mesmo que você ouviu: gol do Flamengo, gol do Charles Guerreiro”, responde o mais novo. “Vamos lá que ainda dá pra empatar!”.
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Corta para janeiro de 2018. O Flamengo estreia no Campeonato Estadual na próxima quarta-feira, dia 18, diante do mesmo Volta Redonda no mesmo estádio Raulino de Oliveira (ainda que um tanto modificado em relação ao palco do jogo de 1995). Enfrentar o time aurinegro em seu estádio tornou-se um hábito quase anual para o Flamengo nas últimas quatro décadas. Mas alguns confrontos fogem dessa banalidade e ganham um lugar de destaque na memória rubro-negra do confronto, ainda que nem sempre o resultado tenha sido, para nós, o melhor possível. Foi o caso daquela partida de 24 de abril de 1995, uma segunda-feira à noite, pelo primeiro turno da fase final do Campeonato Carioca daquele ano.
Vencedor dos dois turnos de seu Grupo B na primeira fase e também da Taça Guanabara, o Flamengo havia entrado no octogonal decisivo do Estadual com nada menos que três pontos de bonificação – Botafogo e Vasco somaram apenas um e o Fluminense, nenhum –, o que só aumentava para o Rubro-Negro, disparado o clube que mais investira para a temporada, a condição de favorito ao título. No entanto, depois de largar com duas vitórias (6 a 0 no Entrerriense e 3 a 1 no America), o time de Vanderlei Luxemburgo começou a ratear, empatando com o Bangu na Gávea (2 a 2, depois de abrir 2 a 0) e perdendo para o Botafogo no Maracanã (1 a 0, gol de Guga).
Na véspera da partida em Volta Redonda, o Bota havia vencido o clássico diante do Vasco e assumido a liderança, deixando ao Flamengo a obrigação de vencer na Cidade do Aço. O Fla tinha alguns desfalques: Fabinho e Válber cumpririam suspensão, abrindo espaço para a entrada de Fábio Baiano na lateral direita (no lugar do primeiro) e o deslocamento de Branco para o meio-campo, com Marcos Adriano passando à outra lateral. Mas a principal ausência em campo – assistiria ao jogo do banco – era Romário, que completava seu quinto jogo seguido de baixa por lesão. Já em fase final de recuperação, a maior contratação do futebol brasileiro naquele ano estava poupada para o Fla-Flu do domingo seguinte.
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Mas havia também alguns retornos e confirmações. Sávio e Mazinho, que haviam saído de campo lesionados no clássico diante do Botafogo, estavam de volta depois de terem ficado de fora do jogo contra o Kaburé em Tocantins. E o goleiro Roger, titular naquela partida pela Copa do Brasil, era mantido no posto. O jovem arqueiro, que voltava de empréstimo ao Vitória, era o terceiro nome a passar pelo gol do Fla naquela temporada, após os fracassos de Adriano (antiga promessa da base) e Emerson (trazido do Grêmio na negociação que levou Paulo Nunes de contrapeso ao clube gaúcho).
E, com a bola rolando no Raulino de Oliveira, Roger logo estaria na berlinda. Não teve muito o que fazer quando o centroavante Humberto acertou uma bomba da intermediária que morreu no ângulo, abrindo o placar para os donos da casa logo aos nove minutos do primeiro tempo. Mas, aos 24 minutos da etapa final, outro chute de longe, desta vez do meia Eduardo, passou por entre as mãos do goleiro e acabou de novo nas redes rubro-negras, ampliando a vantagem. O Fla reagiu dois minutos depois, descontando em cobrança de falta de Sávio, à meia altura, com a bola tocando na trave antes de entrar.
Mas a primeira reação durou menos de 30 segundos. Na saída de bola após o gol rubro-negro, o rápido atacante Paloma (antiga revelação da base do Fla nos anos 80) é lançado, dribla um atônito Jorge Luís e chuta para marcar o terceiro antes da chegada de Agnaldo. Perdido em campo (Sávio, Marquinhos e Marcos Adriano são as “ilhas de lucidez” da equipe), o Fla parece perto de sofrer sua segunda derrota para o Voltaço em 40 confrontos na história até então. A primeira desde setembro de 1984, quase 11 anos antes. Até que um herói improvável inicia a segunda reação.
O paraense Charles Natali de Mendonça Ayres (ou Charles “Guerreiro”, conforme a torcida rubro-negra o apelidara) havia chegado ao Flamengo em janeiro de 1991, vindo do Guarani por indicação do treinador rubro-negro na época – coincidentemente o mesmo Vanderlei Luxemburgo de então. Volante de origem, passou um bom tempo atuando também na lateral-direita, posição que o levou brevemente à Seleção Brasileira um ano e meio após aportar na Gávea.
Entretanto, algo o incomodava: em 236 partidas com a camisa do Fla, nunca havia marcado um gol – “feito” que o levou ao Guinness, o livro dos recordes.
Nunca até aquela noite de segunda-feira, 24 de abril de 1995. Aos 42 minutos, vendo os homens de frente rubro-negros muito marcados, Charles carregou a bola da meia esquerda para o centro. Da intermediária, resolveu arriscar um chute – se o Voltaço marcou duas vezes assim, por que não o Fla? O disparo quicou bem na frente do goleiro Marcelo Lourenço, ali mesmo no montinho, e foi parar nas redes, enlouquecendo o “Guerreiro”, os jogadores e a torcida do Fla. Ainda dá, pessoal.
No último minuto, Sávio recebeu a cobrança de um escanteio curto na ponta direita, e cruzou de canhota para a área. Mazinho, atacante revelado pelo Bragantino, com passagem pela Seleção e trazido do Bayern de Munique como um dos bons reforços daquela temporada, subiu mais alto que o zagueiro e cabeceou no canto oposto de Marcelo Lourenço. E o Flamengo salvou um ponto que parecia improvável.
Como que por encanto (ou, talvez, livrando-se de um), Charles tornou a balançar as redes logo no jogo seguinte, uma surra de 8 a 0 no Kaburé na Gávea. E em grande estilo, com direito a chapéu no pobre goleiro do clube tocantinense. Mas sua carreira de goleador rubro-negro ficaria nisso. E o time, jogando fora a imensa vantagem da largada, logo se veria na incômoda situação de precisar correr atrás dos adversários, até perder o título para o Fluminense, daquela maneira que todos nós sabemos.
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Em outra guinada do destino, Charles iria parar no Vasco pouco tempo depois, marcando um gol logo em um de seus primeiros jogos. Mas não duraria muito na Colina. Sua pele era rubro-negra demais, e seu momento inesquecível foi aquele gol sobre o Volta Redonda, iniciando a reação e jogando uma luz diferente, um verniz de improbabilidade, sobre um jogo banal, fadado a se perder no tempo.
VÍDEO DO JOGO:
Imagem destacada no post e redes sociais: Reprodução
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Emmanuel do Valle é jornalista e pesquisador sobre a história do futebol brasileiro e mundial, e entende que a do Flamengo é grandiosa demais para ficar esquecida na estante. Dono do blog Flamengo Alternativo, também colabora com o site Trivela, além de escrever toda sexta no Mundo Rubro Negro.
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