O título brasileiro de 1980 completa 40 anos em 2020 e terá sua história contada detalhadamente e em três partes
Por Emmanuel do Valle – do Memória Rubro-Negra e Flamengo Alternativo
Primeiro grande título nacional do Flamengo, o Campeonato Brasileiro de 1980 – conquistado em final épica diante do Atlético-MG no Maracanã e que serviu de pontapé inicial para as conquistas da América e do mundo no ano seguinte – completa 40 anos em 2020 e terá sua história contada aqui detalhadamente e em três partes.
Neste primeiro capítulo, traçaremos um panorama histórico do Flamengo nos torneios nacionais anteriores a 1980, contextualizando com o momento vivido pelo clube em cada época e expondo motivos pelos quais ele ainda não havia sentido o gostinho de uma conquista nacional. E também rememoraremos as mudanças vividas pelo Fla e pelo próprio futebol brasileiro naquela virada dos anos 1970 para os 1980, além da campanha na primeira fase.
O Flamengo e os torneios nacionais
Os anos 1960 não foram um período particularmente feliz para o Flamengo. À medida em que os esquadrões memoráveis como os dos dois primeiros tricampeonatos cariocas faziam cada vez mais parte do passado, o clube mergulhava em dificuldades financeiras e, salvo alguns poucos jogadores que marcariam época mesmo naquele período de vacas magras, era forçado a levar a campo times muito mais aguerridos e aplicados do que técnicos.
Foi nessa mesma época que o futebol brasileiro viu nascer os primeiros torneios nacionais, como a Taça Brasil (disputada entre 1959 e 1968), competição entre campeões estaduais, e o Torneio Roberto Gomes Pedrosa, criado em 1967 como uma ampliação do antigo Torneio Rio-São Paulo (o qual o Flamengo havia conquistado em 1961) e realizado até 1970. Diante disso, pelos motivos já citados, o clube teve poucos momentos de brilho nos dois campeonatos.
Do primeiro só participou uma vez, em 1964, na condição de campeão carioca do ano anterior. Entrou já nas semifinais, em que venceu os dois jogos contra o Ceará, antes de ser superado pelo hegemônico Santos de Pelé com uma derrota por 4 a 1 em noite chuvosa no Pacaembu e um empate sem gols no Maracanã, diante de 52 mil torcedores, pouco mais de um terço do público do Fla-Flu do returno do Carioca daquele ano jogado dois meses antes.
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Teria disputado outra vez a Taça Brasil em 1966, pelo mesmo critério da participação anterior. Mas no começo daquele ano de 1965, a Federação Carioca de Futebol decidiu passar a apontar como seu representante na competição o vencedor da Taça Guanabara, um torneio à parte do campeonato principal a ser instituído naquela temporada, em meio às comemorações do quarto centenário de fundação da cidade do Rio de Janeiro.
O Torneio Roberto Gomes Pedrosa, por sua vez, pegou o Flamengo vivenciando o pior momento daquele período já ruim, bem no meio do jejum de sete anos sem títulos cariocas – o segundo maior da história do clube – entre 1965 e 1972. Com três campanhas fracas nas primeiras edições, a exceção seria 1970, quando o time surpreendeu ao brigar até o fim pela vaga no quadrangular final, perdida no saldo de gols. Acabaria em quinto lugar.
A partir de 1971, ao longo daquela década, o clube começaria a oscilar boas e más campanhas, algumas vezes batendo na trave para figurar entre os finalistas. Em 1974, por exemplo, havia feito a segunda melhor campanha geral na primeira fase entre os 40 participantes, ficando só atrás do Grêmio. Mas na etapa seguinte, com o time mutilado por lesões, entre elas a da revelação Zico, ficaria de novo pelo caminho antes de chegar ao quadrangular decisivo.
Em 1975, a campanha foi mais irregular nas primeiras etapas, mas o time parecia ter crescido na hora certa, às vésperas das semifinais. Vinha de um excelente empate diante do futuro campeão Internacional dentro do Beira-Rio quando pegaria, na última rodada, um surpreendente Santa Cruz, também brigando pela vaga. No Maracanã, o Flamengo jogava pelo empate, mas o Tricolor de Luís Fumanchu, Givanildo e Ramon se superou e venceu por 3 a 1.
No ano seguinte, outra vez a excelente campanha acabou se perdendo em meio ao regulamento da competição e a derrotas fora de hora. O time foi o segundo que mais somou pontos ao longo do certame, atrás apenas de um irretocável Internacional (que levantaria o bicampeonato) e à frente dos outros três semifinalistas (Corinthians, Fluminense e Atlético-MG). Mas acabou mais uma vez em quinto, eliminado na terceira etapa pelo saldo de gols.
Entretanto, aquelas eliminações não chegaram exatamente a tirar o sono dos rubro-negros. Na época, entre os torcedores do Rio de Janeiro, o Campeonato Carioca ainda era aquele visto com mais carinho, não só entre os flamenguistas – e mesmo tendo em vista as conquistas nacionais de Botafogo (Taça Brasil de 1968), Fluminense (Torneio Roberto Gomes Pedrosa de 1970) e Vasco (Brasileirão de 1974). Alguns números demonstravam isso.
Tanto em 1974 quanto em 1976, mesmo com as boas campanhas do Flamengo, o Campeonato Brasileiro registrou médias de público inferiores às do certame carioca. No primeiro ano, foram 11.601 torcedores em média os que assistiram aos jogos do torneio nacional, enquanto 15.012 viram, também em média, as partidas do estadual. Já em 1976, mesmo com a presença de público subindo para a média de 17.010 no Brasileiro, a do Carioca saltou até 19.070.
Mesmo os clássicos disputados pelo Brasileirão na maioria das vezes não alcançavam os mesmos fantásticos números registrados pelas bilheterias do Maracanã no Carioca. Naquele mesmo ano de 1976 em que Flamengo e Vasco estabeleceram o público recorde da história do clássico num jogo rotineiro de Taça Guanabara (mais de 174 mil pagantes), os dois levaram pouco mais de 52 mil num jogo pela reta final do Brasileiro, com ambos podendo ir às semifinais.
Por vezes, o que prejudicava a campanha do Flamengo e diminuía o interesse do torcedor pela competição nacional era o desequilíbrio das tabelas. Não foram poucas as vezes em que, desde os tempos do Robertão, o clube teve de fazer um número absurdamente maior de partidas como visitante, atuando em bem menos ocasiões no Rio (leia-se Maracanã). Era como se, para o clube, o campeonato nacional fosse uma espécie de excursão valendo pontos.
Na fase de classificação do Brasileirão de 1972, o Flamengo fez 21 partidas contra equipes de outros estados. Destas, em apenas cinco foi o mandante. No ano seguinte, a distorção voltou a acontecer: dos 17 jogos contra clubes de fora do Rio na primeira fase da competição, o time fez apenas quatro no Maracanã. Pulava de Goiânia para Recife, de Aracaju para Belo Horizonte, de Vitória para Belém. Tudo em intervalos muito curtos.
Tendo de cumprir essa estafante rotina de viagens, estabelecida pela antiga CBD no intuito de aumentar a arrecadação do torneio – ou seja, fazer cortesia com o chapéu rubro-negro, o que só reforçava a imagem do Fla (e sua torcida nacional) como trem pagador do futebol brasileiro –, o time não poderia mesmo chegar muito longe. Era natural que, sem o devido preparo para a maratona, perdesse peças (e pontos) importantes pelo caminho.
Além de tudo, o Campeonato Carioca (e os estaduais em geral) ocupava a maior parte, cerca de dois terços (às vezes mais), do calendário do futebol. Eram as suas disputas que priorizavam a atenção dos torcedores do Rio. E foi pela perda da chance de decidir um título carioca – o de 1977, contra o Vasco – que o Flamengo enfim decidiu mudar tudo, no episódio que entrou para a história rubro-negra como o Pacto do Barril.
Acordando para o Brasileiro
O grande incômodo, a sensação de que realmente pegava mal um clube do tamanho, do peso e da representatividade do Flamengo não ter um título nacional, só começou a bater pelos lados da Gávea no fim dos anos 1970. E, por mais contraditório que possa parecer, reconquista da hegemonia estadual, com o tricampeonato levantado em 1979, acabou servindo também para abrir a cabeça do clube no âmbito nacional.
Foi como subir um degrau de cada vez. Se o gol histórico de Rondinelli de cabeça contra o Vasco em 1978 encerrava traumas regionais recentes e, sobretudo, simbolizava enfim a afirmação da talentosa geração liderada por Zico, e se os outros dois campeonatos estaduais vencidos na longuíssima e confusa temporada de 1979 colocavam o clube como o dono do pedaço no Rio, a ordem agora era enfim ser campeão do Brasil.
Haveria, porém, um obstáculo. No mastodôntico Brasileirão de 1979, que contou com 94 clubes, o Flamengo (assim como algumas outras equipes do Rio e de São Paulo) entrou na segunda fase, ficando em primeiro no seu grupo que incluía Grêmio, Bahia, Santa Cruz, Náutico, Londrina, XV de Piracicaba e Gama. Na etapa seguinte, teria pela frente o Palmeiras (que só estreara naquela fase), o São Bento de Sorocaba e o Comercial de Ribeirão Preto.
Nas duas primeiras rodadas, deu a lógica: os dois favoritos do grupo venceram os adversários interioranos. Mas só o Flamengo atuou fora de casa, enfrentando clima de guerra em Ribeirão Preto para vencer o Comercial por 2 a 0. Para o confronto decisivo da última rodada, o Palmeiras dirigido por Telê Santana tinha a vantagem do empate pelo saldo de gols. No Flamengo, haveria o desfalque de Rondinelli, mas todos confiavam na classificação.
Significativamente, era a primeira vez que o Fla levava mais de 100 mil pessoas ao Maracanã em um jogo de Campeonato Brasileiro contra uma equipe de fora do Rio. Só que o Palmeiras abriu o placar aos 11 minutos, com Jorge Mendonça livre na pequena área para escorar um cruzamento de César. O Flamengo foi para o intervalo perdendo, mas conseguiu um pênalti no início da etapa final e Zico bateu com categoria para empatar. Era a senha para a virada.
Só que ela não aconteceu. O time se mandou todo para o ataque, já que só a vitória o levaria às semifinais, e deixou enormes espaços às costas da defesa aproveitados pelo time do Palmeiras. Baroninho bateu falta e Carlos Alberto Seixas cabeceou para colocar os paulistas outra vez na frente. Pedrinho marcou o terceiro em nova jogada de Baroninho. E, no último minuto, em outra jogada de Baroninho, o volante Zé Mário fechou a goleada.
A derrota em casa se tornou ainda mais vexatória graças ao papelão protagonizado por Beijoca, centroavante contratado do Bahia para o Brasileiro e que entrara naquele jogo no lugar de Adílio, mas só seria notado ao agredir o volante Mococa e o ponta Baroninho, sendo merecidamente expulso de campo. O esquentado atacante baiano vestiria ali a camisa rubro-negra pela última vez, prenunciando outras mudanças no elenco para 1980.
Novos ventos
Naquela virada de ano, aliás, muitas coisas mudariam no futebol brasileiro. Até a própria entidade que tinha o papel de organizá-lo. Em 23 de novembro de 1979 foi criada a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), sucessora da CBD, extinta em setembro. Imediatamente após seu surgimento, a CBF teve seu primeiro presidente eleito, o industrial carioca Giulite Coutinho, ex-presidente do America, e que prometia reformular o torneio nacional.
A primeira medida empreendida seria a transferência do torneio para o primeiro semestre do ano, começando no fim de fevereiro e se estendendo até o início de junho. Outra novidade, mais importante, foi a cisão da competição em Taça de Ouro e Taça de Prata, equivalentes ao que se chamaria de primeira e segunda divisão, respectivamente. E o número de participantes passou a ser mais controlado, quase fixo, bem diferente dos anos anteriores.
Depois da competição inchada em 1979 (e que, além disso, também não contou com muitos dos clubes paulistas, que abriram mão de disputa-la), agora apenas 40 – nomeadas obedecendo a critérios técnicos, limando a politicagem que marcou os torneios dos anos 1970 – iniciariam a disputa da Taça de Ouro, com quatro equipes vindas da Taça de Prata (que teria 64 participantes) subindo para disputar o torneio de elite a partir da segunda fase.
Nos exatos 76 dias compreendidos entre 9 de dezembro de 1979, quando da eliminação diante do Palmeiras, e 24 de fevereiro de 1980, data de sua estreia no Campeonato Brasileiro seguinte, o Flamengo também sofreu pequenas revoluções. Não foram muitas as peças que deixaram o elenco: além do já citado Beijoca, que retornou ao Bahia, o zagueiro Boca, que fez alguns jogos pelo Brasileiro, foi devolvido à Francana-SP, seu clube de origem.
Para reforçar a zaga, ponto mais criticado na derrota para o Palmeiras, o Flamengo contratou do Londrina um jogador que havia impressionado ao atuar contra o time no jogo pelo Brasileiro disputado no Estádio do Café. Marinho, perto de completar 25 anos, com passagem rápida pelo São Paulo em 1977, boa estatura e impulsão, destacava-se também pela velocidade na cobertura e recuperação. Chegava para ser o titular do setor, ao lado de Rondinelli.
Outro que chegava era o lateral-direito Carlos Alberto, do Joinville, marcador seguro e apoiador eficiente. Vinha para suprir uma possível lacuna no setor depois de o Internacional quase tirar Toninho Baiano e, mais tarde, o jovem Leandro da Gávea. Outras apostas de custo reduzido eram o meia Aderson, do Remo, e o centroavante Gérson Lopes, do Operário-MT, 20 anos, franzino, mas promissor. E que seria o pivô de um conflito que agitaria a Gávea.
Num amistoso em Cuiabá, o Fla venceu o Mixto por 7 a 1, e o garoto jogou de início, marcando três gols. Cláudio Adão, o titular, ficou no banco e entrou no fim do jogo. Como também ficaria no amistoso seguinte, contra o Atlético-MG no Mineirão, antes de um problema muscular cortá-lo da delegação. Insatisfeito por pensar que de novo seria preterido no time, como chegara a ser em 1979 por Luizinho das Arábias, Adão botou a boca no mundo.
O centroavante exigia um lugar no time, sob a alegação de que era o segundo artilheiro da equipe (atrás apenas, naturalmente, de Zico). Ou então que o vendessem. No fim das contas, sua atitude se revelaria um exagero. Primeiro porque Gérson Lopes, ainda muito imaturo, acabaria sequer participando da campanha no Brasileiro (assim como Aderson). Sua carreira com a camisa rubro-negra se resumiria a aqueles amistosos de pré-temporada de 1980.
Segundo porque Cláudio Coutinho havia sido justamente o técnico que pedira sua contratação ao Flamengo em 1977, quando quase ninguém acreditava que Adão voltaria a jogar futebol após uma gravíssima fratura na perna, sofrida ainda quando defendia o Santos e que o afastara dos gramados por mais de um ano. A pouco mais de uma semana da estreia no Brasileiro, o treinador tinha agora um novo problema, o da camisa 9, para solucionar.
O próprio Coutinho, aliás, não deixava de representar uma novidade. No início de fevereiro, ele deixara o comando da Seleção, trocado por Telê Santana, precisamente o técnico do Palmeiras que eliminara o Flamengo no Brasileiro. O que significava estar livre para enfim se dedicar em tempo integral ao clube e, sobretudo, não ter mais de conviver com as críticas – vindas em especial da imprensa paulista – à sua maneira de comandar o escrete.
Para suprir a ausência de Adão – que, após ser afastado, acabaria negociado com o Botafogo já com o Brasileiro em andamento – o treinador teve de improvisar um novo sistema, com Tita a princípio escalado no centro do ataque, mas formando o vértice mais avançado de um certo “losango móvel” também composto por Andrade, Carpegiani e Zico, que girava o tempo todo, tendo ainda Adílio aberto pelo lado esquerdo como falso ponta.
Enquanto isso, lá atrás sob as traves, Raul – que esteve quase certo de ser vendido ao Grêmio – ganhava uma nova chance entre os titulares depois de ter atuado em apenas sete das 82 partidas disputadas pela equipe ao longo de 1979. Uma lesão de Cantarele fez com que o veterano goleiro fosse novamente escalado nos amistosos, saindo-se muito bem, em especial num empate em 0 a 0 diante do São Paulo no Morumbi, no qual fechou o gol.
A Taça de Ouro
Além de Raul vestindo a camisa 1, o Flamengo iniciaria sua campanha nacional com Carlos Alberto na lateral-direita (Toninho retornaria na quarta rodada), Rondinelli e Marinho no miolo de zaga e Júnior na lateral-esquerda. No meio, Andrade, Carpegiani e Zico, tendo Reinaldo (ex-America) pela ponta-direita e Adílio (depois Carlos Henrique, ponteiro veloz trazido da Desportiva em 1979) na esquerda. Por fim, Tita de centroavante, dentro do “losango móvel”.
A etapa inicial da Taça de Ouro trazia os 40 participantes divididos em quatro grupos de dez, enfrentando-se dentro das chaves em turno único. O Flamengo ficou no Grupo C e teria pela frente logo de cara nada menos que o Internacional de Falcão, Batista, Mário Sérgio e um novato chamado Mauro Galvão. Era o atual detentor do título nacional, conquistado de maneira invicta derrotando duas vezes o Vasco na decisão em dezembro de 1979.
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O outro grande do grupo era o Santos, que mantinha a base dos “Meninos da Vila” originais, com o goleiro Marola (da Seleção Brasileira de Novos), um meio-campo talentoso com Gilberto Costa, Rubens Feijão e Pita, além dos velozes ponteiros Nilton Batata e João Paulo. A quarta força era a perigosa Ponte Preta, vinda de seu segundo vice-campeonato paulista em três anos e recheada de nomes de alto nível, como o goleiro Carlos, da Seleção principal.
Completavam o grupo a boa equipe do Náutico, o truculento São Paulo de Rio Grande (RS), o Botafogo da Paraíba (indicado como vencedor do estadual de 1978, uma vez que o de 1979 ainda não tinha se encerrado – e só terminaria em junho de 1980, após o Brasileiro) mais outros três campeões estaduais: o Ferroviário do Ceará, o Itabaiana (que conquistara o bi sergipano mais tarde estendido ao penta) e o Mixto (iniciando um tetra mato-grossense).
Logo de saída, o Flamengo teria de enfrentar os dois principais adversários, a começar pelo Santos no Morumbi. Na época, Zico era com frequência menosprezado pela imprensa paulista, tratado como “jogador de Maracanã”, incapaz de decidir jogos atuando longe do Rio, e hostilizado pelo público quando vinha jogar em São Paulo, até mesmo pela Seleção. Mas o camisa 10 rubro-negro trataria de silenciar os críticos e a torcida adversária.
Naquela tarde de 24 de fevereiro, mesmo enfrentando dura marcação do lateral santista Nelson (o futuro técnico Nelsinho Baptista, que passaria sem brilho pelo Fla em 2003), ele anotaria o gol da vitória aos 25 minutos da etapa inicial, após grande jogada do ponteiro-direito Reinaldo, que ganhou disputa de bola com João Paulo na lateral, avançou em velocidade, driblou o zagueiro Neto e fez o ótimo passe para Zico tirar do alcance de Marola.
O Galinho voltaria a decidir o confronto seguinte, diante de um Internacional que surpreendeu negativamente por exibir um antijogo pouco afeito à grande qualidade de talento que reunia. Aos 11 minutos da etapa final, Andrade recebeu de Reinaldo e fez assistência maravilhosa para Zico, a bola passando quase como pelo buraco de uma agulha. E o camisa 10 da Gávea chutou alto, vencendo o goleiro Gasperin e selando a segunda vitória rubro-negra.
Após derrubar os principais adversários, parecia que o Flamengo caminharia tranquilo rumo a uma campanha perfeita que lhe daria o primeiro lugar da chave, certo? Errado. Aquele era um grupo traiçoeiro, e o próprio Inter já havia sido vítima de uma zebraça logo na estreia, batido pelo Itabaiana em pleno Beira Rio por 2 a 1. O time sergipano perderia logo em seguida para o Botafogo-PB, que também venceria o Náutico em Recife.
O Belo seria o próximo adversário do Fla no Maracanã e assumiria o status de grande “fantasma” do grupo: saiu na frente com gol de Soares no começo do segundo tempo, sofreu o empate dos rubro-negros – em atuação confusa e desastrosa – com gol de Tita, mas logo voltaria a balançar as redes com Zé Eduardo. Uma cabeçada de Rondinelli ainda acertou a trave, mas os visitantes foram sempre melhores e mereceram a vitória por 2 a 1.
O resultado derrubou milhares de apostadores da Loteria Esportiva e levou os rubro-negros a repensarem seu esquema ofensivo, considerado pouco efetivo. Tita não rendia como “falso 9”. Com Cláudio Adão descartado, era preciso trazer outro centroavante de ofício, um goleador nato. O clube já tinha um nome bombástico em mente: Roberto Dinamite, que em janeiro trocara o Vasco pelo Barcelona, mas não vinha agradando na Catalunha.
Percebendo a oportunidade, mesmo com o caixa baixo, o presidente rubro-negro Márcio Braga embarcou para a Espanha para tentar negociar – até porque os catalães também não estavam nadando em dinheiro, ainda deviam parte do pagamento ao Vasco e, diante disso, não fariam jogo duro para liberar o atacante, que aceitou vir para a Gávea. Quando a notícia chegou ao Rio, a perspectiva da dupla Zico-Dinamite no Flamengo acendeu a torcida.
Enquanto isso, o time se reabilitava no campeonato. Venceu o Mixto em Cuiabá (2 a 0, gols de Carlos Henrique e Zico) e o Ferroviário no Maracanã (2 a 1, dois de Zico). Em Recife, diante do Náutico, dominou a etapa inicial e marcou com Toninho. Zico saiu no intervalo, Tita ampliou a contagem no segundo tempo, mas os pernambucanos cresceram no jogo e empataram a quatro minutos do fim. Só mesmo a atuação magistral de Raul impediu a virada.
No dia 20 de março, o time recebeu o Itabaiana e não teve problemas para disparar uma goleada de 5 a 0. Só no primeiro tempo, Zico já havia marcado três. Tita ampliou com um chute da entrada da área no começo da etapa final. E o Galinho ainda teve tempo de anotar seu quarto, que o levava à artilharia temporária da competição, com nove gols em sete jogos. E o Flamengo, já classificado para a segunda fase, alcançava a liderança da chave.
A partida seguinte, o empate sem gols contra o São Paulo de Rio Grande no Estádio Aldo Dapuzzo, foi uma verdadeira caçada dos defensores da equipe local aos jogadores rubro-negros, em especial a Zico, que apanhou demais, a ponto de declarar ao fim do jogo: “Vai chegar o dia em que eu não vou aguentar mais. Aí terei que quebrar a perna de alguém para acabar com essa violência. É assim, tem gente que só entende a lei da selva”.
O time gaúcho até demonstrou ímpeto ofensivo no início da partida, mas aos poucos a defesa rubro-negra, muito segura, foi se assenhorando do jogo. Raul, sempre muito calmo. Júnior, ótimo na defesa e no apoio. Andrade, perfeito na proteção à zaga. Zico, uma preocupação constante para os adversários. E Tita, movimentando-se muito e criando ótimas opções de jogada. O gol da vitória não saiu, mas a atuação do Flamengo foi consistente.
Um novo goleador
O que acabou não dando certo foi a negociação para trazer Roberto Dinamite. Desesperados com a possibilidade de ver seu maior ídolo de então seguir para o arquirrival, os dirigentes vascaínos trataram de atravessar a negociação: com o pretexto da dívida que o Barcelona ainda tinha com o clube, acertaram a devolução de Roberto e a rescisão do contrato, com os catalães indenizando o Vasco pelo valor desembolsado até ali.
O Flamengo, porém, não deixou de se reforçar. Se o atacante contratado pode ser chamado de “plano B”, então foi um dos melhores do tipo que se tem notícia. Surgido na base rubro-negra como Joãozinho, ponta-direita, mudou de nome e posição ao ser levado ao Confiança. De lá, foi para o Santa Cruz, onde explodiu e chegou à Seleção com o próprio Coutinho. Vendido caro ao Fluminense, seguiu então para o México antes de voltar à Gávea. Era Nunes.
“Vim para ficar. Comecei aqui, e minha meta sempre foi voltar para o Flamengo. Se tiver que retornar ao México, abandono o futebol. Mas tenho certeza de que isso não acontecerá. Confio no meu futebol”, declarou o atacante na véspera da estreia, contra a Ponte Preta no Maracanã, pela última rodada da primeira fase. Trazido do Monterrey por empréstimo, Nunes desejava retribuir as expectativas da torcida com muitos gols. E não decepcionaria.
Mesmo já classificados, Flamengo e Ponte Preta fizeram bom jogo naquela noite de 30 de março, com quatro gols e algumas belas jogadas, como a finalização de Zico na trave, num rebote de Carlos, e as boas intervenções dos dois goleiros. O Fla saiu na frente aos 18 minutos, quando Zico lançou Tita, que desceu pela direita na diagonal e fez um passe espetacular para Nunes, nas costas da defesa. O novo dono da 9 chutou forte e correu para o abraço.
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A Ponte empatou pouco depois em cabeçada de Serginho. Mas no segundo tempo, sob chuva, Nunes voltaria a se destacar: em ótima jogada individual, passou por vários defensores antes de entregar na medida para o chute de Zico. Carlos nem se mexeu: Fla 2 a 1. O zagueiro Juninho ainda salvaria cabeçada do Galinho em cima da linha e, aos 38, Odirlei tornaria a empatar. Porém, diante de mais de 75 mil torcedores, a estreia de Nunes foi animadora.
O empate fez com que o Flamengo terminasse na segunda colocação do grupo, atrás do Santos. Mas a campanha, a quarta melhor entre todos os 40 clubes da primeira fase, era consistente: cinco vitórias, três empates e apenas uma derrota, 16 gols marcados e sete sofridos. Também se classificaram naquela chave, pela ordem, o surpreendente Botafogo-PB (em terceiro lugar), Internacional, Ponte Preta, Ferroviário do Ceará e Náutico.
E o time se ajeitava: Raul seguia em grande forma no gol; a nova zaga se entrosava; Júnior fazia partidas cada vez mais exuberantes; Zico já despontava como o artilheiro, com 10 gols, ao lado do gremista Baltazar; Tita era deslocado para a direita do ataque, deixando o ponta autêntico Reinaldo no banco; Nunes estreara de maneira empolgante; e Júlio César, o “Uri Geller”, recuperava seu melhor futebol entrando no time no lugar de Carlos Henrique.
Na segunda fase, os 28 clubes classificados da etapa anterior da Taça de Ouro se juntavam aos quatro promovidos da Taça de Prata (América de São José do Rio Preto-SP, Americano, Bangu e Sport) e eram novamente distribuídos em grupos, agora em oito chaves com quatro equipes cada enfrentando-se em turno e returno. Ao fim das seis rodadas, os dois melhores colocados de cada uma delas avançariam para a terceira fase de grupos.
A chave do Flamengo na segunda etapa teria, portanto, o já citado Bangu, vindo da Taça de Prata; o Santa Cruz, quinto colocado no Grupo D; e o Palmeiras, terceiro colocado no Grupo B, criando imediatamente a expectativa para o reencontro entre rubro-negros e alviverdes, apenas quatro meses após o triunfo dos paulistas no Maracanã no fim do ano anterior. Mas essa história será contada na segunda parte do especial
Até lá! SRN!
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