Tempos de insucesso desportivo no Flamengo são pródigos em atrair discussões estéreis, com o objetivo de desviar o foco. Mas, aparentemente, esse tema da SAF – Sociedade Anônima do Futebol, parece ir um pouco além.
Há motivos reais para suspeitar que os atuais dirigentes de fato estão cogitando vender o futebol do Flamengo para uma sociedade anônima, ainda que, a princípio, o clube venha a ser seu acionista majoritário.
Bet365 4.9 de 5 |
|
Pretendo escrever alguns artigos sobre o assunto, afinal há tanto a dizer que é útil fracionar os argumentos. E começo pelo que me parece mais urgente: Landim se aproveitar da desatenção coletiva para atrair a simpatia dos associados do Flamengo com a promessa de que ficarão ricos com a venda do clube.
Leia do mesmo autor: SAF – Sociedade Anônima do Futebol: uma abordagem crítica
Contudo, nada pode ser mais falacioso, como restará claro ao final desse texto. Começo pela transcrição das falas de Landim:
“Se você quer ter um estádio e não quer se endividar, você tem que chamar capital. E nada melhor do que chamar capital para o Flamengo no momento, mas não vendendo título a 15 mil reais, e sim captando recurso abrindo share de 500 mil reais por cada valor do título. É só isso que eu quero dizer. A forma de crescer patrimônio não é vender título por 15 mil ou 20 mil reais. É emitindo ações para diluir os sócios, mas mantendo o controle dos sócios, mas por um valor muito maior….. Fiz isso muitas vezes, ganhei dinheiro fazendo isso”.
“Um título custaria cerca de R$ 20 mil. Os benefícios seriam votar para presidente e frequentar o clube social. Mas na prática vale muito mais, porque ele é sócio de um clube que dá R$ 350 milhões de EBITDA (lucro antes dos descontos com impostos, juros, amortização e depreciação) por ano. Se eu emito mais sete mil títulos por R$ 20 mil, seriam cerca de R$ 140 milhões, mas acho que o Flamengo vale R$ 5 bilhões. Só faria se fosse louco, irresponsável”.
Por que digo que Landim prega para desatentos? Porque embora as expressões “sócios” e “associados” sejam etimologicamente parecidas, representam coisas bem diferentes. E o valor de um título de associado não tem absolutamente nada a ver com o preço de uma ação ou cota social de uma sociedade empresarial.
Reconheço: é tentador acreditar que aquilo que hoje vale R$ 15 mil possa valer amanhã R$ 500 mil. Quem não ficaria feliz com uma valoração patrimonial tão espantosa?
O problema é que, no mundo real, ativo algum se valoriza mais de 3.000% da noite para o dia. Na Mega Sena, a aposta de 6 números tem 1 chance de vencer e 50.063.859 chances de perder, mas, ainda assim, a possibilidade está lá.
No entanto, a chance do título do Flamengo passar a valer mais se o Landim vender o clube é, literalmente, ZERO.
Me perdoem a mistura de juridiquês com pretenso didatismo, mas vamos dar uma olhada rápida nas diferenças entre uma associação (isto é, um CLUBE) e uma sociedade (qualquer sociedade, mas no caso específico, uma SAF). Para nossa sorte, o Código Civil é bem detalhista ao marcar essas diferenças.
Leia mais: Landim define torcedor do Fla como mero ‘tomador de Coca-Cola’
Uma associação é uma “união de pessoas que se organizam para fins não econômicos”. Já uma sociedade é formada por “pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”.
Sem entrar em grandes detalhes – e há muitos detalhes – é bem simples perceber que há uma diferença marcante entre as entidades. Afinal, uma sociedade divide entre seus membros os resultados econômicos de sua atividade, ao passo que isso não existe em uma associação.
Exatamente porque esses resultados são divididos entre quem faz parte da sociedade, o valor da ação ou cota social tem uma relação direta com o tipo de resultado da atividade econômica. Afinal, se a empresa lucra muito, vale a pena se tornar seu sócio e aproveitar a divisão desse lucro (conhecido como “dividendo”).
Já em uma associação nada disso acontece. Os resultados obtidos pela associação não são repartidos entre os associados. Nem mesmo os resultados altamente negativos: nenhum associado responderá pelas obrigações do clube. Não precisam acreditar em mim: basta ler o art. 1º do Estatuto do Flamengo – sim, logo o art. 1º.
Que fique bem claro, se é que ainda não ficou: NUNCA o título de associado do Flamengo (conhecido impropriamente como “sócio-proprietário”, o que ajuda a aumentar a confusão) será transformado em uma ação em uma futura Sociedade Anônima de Futebol. Isso é impossível, tanto pela lei quanto pela lógica.
Dito isso, não custa especular sobre essa falácia do título que hoje vale R$ 15 mil poderia valer R$ 500 mil em uma futura SAF. Assim ficará mais claro que só mesmo a desatenção pode permitir que esse raciocínio prospere.
Não sei ao certo quantos “sócios-proprietários” o Flamengo tem. Só sei que em 2021 havia 5.025 com direito de voto. Considerando que alguns poderiam estar momentaneamente inadimplentes e outros cumprindo o prazo de carência para poder votar, vou admitir que sejam 6 mil “sócios-proprietários”.
Em uma Sociedade Anônima, quanto vale uma ação? A resposta é bem simples: o valor da ação é o resultado da divisão do patrimônio líquido da companhia pela quantidade de ações existentes, o chamado “VPA – Valor Patrimonial da Ação”.
Esse é o raciocínio que leva o Landim a dizer que se o clube vale R$ 5 bilhões, o valor do “título” seria de R$ 500 mil (no caso, até mais, já que não há 10 mil “sócios-proprietários”). Porém, vejamos: o patrimônio líquido do Flamengo (ou seja, a diferença entre seus ativos e seus passivos), segundo o balancete mais recente, é de R$ 602 milhões.
Leia também: Landim admite assumir cargo em SAF do Flamengo
E não há nada de errado nesse valor. Afinal, como espero que já tenha ficado claro, um título de uma associação não tem nada a ver com o patrimônio dessa associação. Tem a ver com os direitos conferidos aos associados.
Por que um título do Country Club, que fatura apenas uma pequena fração do Flamengo e tem um patrimônio muito inferior vale pelo menos umas 20 vezes mais? Porque é um clube exclusivo para gente muito rica, com regras estritas de admissão e poucos títulos disponíveis.
E então por que alguém se dispõe a investir R$ 15 mil + taxa de transferência para comprar um título do Flamengo quando é possível se associar como contribuinte pagando apenas R$ 80,00 a mais por mês que a mensalidade de proprietário, podendo inclusive votar e se candidatar ao Conselho Deliberativo?
Ora, como há 6 mil “sócios-proprietários”, o título de associação já deveria estar sendo vendido por cerca de R$ 100 mil, caso o Landim estivesse correto em suas premissas. E hoje é possível comprar um título por cerca de R$ 15 mil ou até menos de gente que quer se desassociar (não há títulos à venda diretamente pelo clube).
Porque, no Flamengo, a participação política é mais óbvia para quem é proprietário, inclusive com cargos exclusivos a esses.
Encaminhando a conclusão: rubro-negros apaixonados compram títulos de sócios-proprietários por conta dos direitos políticos a ele agregados. Tanto assim que 25% desses sócios-proprietários sequer moram no Rio de Janeiro.
Portanto, SE um dia o Flamengo cometesse o desatino de transferir seu futebol para uma sociedade anônima, seria esta a quem competiria tomar as decisões relevantes acerca da nossa maior paixão.
Assim, o poder político dos sócios-proprietários seria bastante reduzido, passando apenas a escolher, de tempos em tempos, quem representará o CRF na SAF (sequer o presidente dessa SAF poderia ser escolhido pelos associados do Flamengo, uma vez que pela lei a escolha é obrigatória pela assembleia de acionistas)
Destacando: tudo o que os Conselhos fazem hoje relacionado ao futebol, como escolha de uniformes, aprovação de patrocínios, aprovação de orçamento, fiscalização do orçamento, comissões temáticas e, claro, pressão política nos dirigentes, tudo isso vai passar para a esfera da SAF.
Confira: Capelo: Amadorismo prejudica o Fla e SAF não é uma saída ideal
A cada dois ou três anos o Conselho Deliberativo vai se reunir para escolher quatro ou cinco pessoas que irão representar o clube nas reuniões da SAF e só!
No próximo artigo vou falar mais sobre a governança de uma hipotética SAF e do quanto ela alija os associados do Flamengo de qualquer processo decisório.
Concluo repetindo o que aqui já disse tantas vezes: uma desastrada venda do Flamengo não apenas não irá valorizar um único real o preço cobrado pelo título de associação quanto é bem provável que uma desvalorização ocorra.
Quanto mais claro ficar que os direitos políticos que hoje agregam bastante valor ao preço cobrado por uma revenda estarão irremediavelmente mitigados, praticamente anulados. Olho vivo, portanto.
Walter Monteiro é advogado e sócio do Flamengo. Foi candidato a presidente do clube em 2021. Escreve no MRN sobre finanças, governança e assuntos afins. Siga-o no Twitter.
Siga o MRN no X/Twitter, Threads, BlueSky e no Instagram.
Contribua com a independência do nosso trabalho: seja apoiador.
- Bap pretende contratar português para compor diretoria do Flamengo, afirma jornalista
- Dá para sonhar? Projeção aponta Flamengo com chance de título do Brasileirão menor que 1%
- Presidente do Real Madrid exalta Vini Jr e critica votação da Bola de Ouro
- Libertadores 2025: confira as equipes já garantidas na competição
- Torcida do Flamengo faz linda recepção na chegada do Sub-20 ao Acre