Quando o jogo fica caótico, fica difícil. É bom que Domènec venha de uma escola justamente obcecada pelo controle dos espaços e do ritmo
Um jogo cheio de nuances. Muitos detalhes moldaram o duelo entre Flamengo e Atlético-MG, Domènec e Sampaoli. Melhor para o time mineiro, que levou para casa os três pontos. Tem muita coisa para dissecar no jogo…
Em 2019, Sampaoli — ainda treinando o Santos — enfrentou o Flamengo na última rodada do primeiro turno. Um jogo estudado, cheio de detalhes, jogado em alto nível, com poucas chances e decidido num lance de genialidade de Gabigol.
Em 2020, Sampaoli pegou o Flamengo logo na primeira rodada. Os jogos foram parecidos, mas o nível técnico foi um tanto abaixo — normal por todo o contexto — e o jogo acabou sendo decidido por um lance bizarro de puro azar. Coisas do futebol!
Antes de falar sobre o jogo em si, é importante falar um pouco sobre o campeonato. Afinal, esse será o Brasileirão mais atípico de todos. Teremos fatores estranhos de todos os lados. Isso torna a disputa absolutamente imprevisível. Para começar, os jogos não terão torcida. Só isso já influencia demais. O risco de vermos jogadores vetados por covid fará com que os times se modifiquem de uma hora para a outra. Além disso, teremos uma verdadeira maratona, com jogo quarta e domingo.
Do mesmo autor: O Fla de Domènec – Parte 1: O tal jogo de posição
Pela primeira vez, veremos um campeonato se estender por todo o verão, com jogos a cada três dias num calor de rachar logo no momento mais agudo da competição — com Libertadores, Sul-Americana e Copa do Brasil ao mesmo tempo.
Por fim, ninguém sabe direito como os gramados dos estádios reagirão a tudo isso. O do Maracanã já inspira preocupação. A bola já não está rolando legal e a maratona nem começou! Isso prejudica demais o estilo de futebol que o Flamengo pretende impor.
Dito tudo isso, vamos para a análise do jogo em si.
Os primeiros 25 segundos nos mostram quase tudo que precisamos saber: muita intensidade, roubadas no campo de ataque, pressão pós-perda e o Atlético tentando explorar a velocidade pelo lado esquerdo.
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Domenec veio no 4-4-2 padrão deixado por JJ, mas Sampaoli partiu para uma escalação um pouco diferente. Um 4-3-1-2 sem referência na frente e com um esquema interessante na defesa, que formava uma linha de 5 quando o Flamengo avançava.
Para que o jogo do Atlético funcionasse, Gabriel e Nathan eram as chaves.
O primeiro era o que Sampaoli chamou de “líbero de contenção”, marcava forte na frente, mas virava um terceiro zagueiro para fazer a sobra contra os dois atacantes rubro-negros.
O segundo era mais um meia do que um falso 9 propriamente dito, mas precisava chegar com força ao ataque para que o Atlético levasse algum perigo real, já que Savarino e Marquinhos jogavam bem abertos.
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Quando saía com a bola, o Atlético tentava acelerar com passes incisivos pelo meio — usando Gabriel e Nathan sempre que possível — e forçar o jogo pela esquerda do ataque.
Mesmo com a boa atuação individual dos dois, o time tinha duas dificuldades.
Primeiro, tinha dificuldade para povoar a área. Repare como mesmo no lance do gol, a jogada se desenha pela esquerda, mas ninguém invade a área. Todo mundo ali tem o cacoete de chegar por trás, ser o homem surpresa…
Segundo, a dificuldade de sair tocando lá de trás e fazer a bola chegar limpa na frente quando o Flamengo estava posicionado. O time rubro-negro conseguiu 9 roubadas de bola no campo de ataque só no primeiro tempo.
Quando o Fla tentava sair com a bola lá de trás, o Atlético marcava de maneira individual no campo todo com muita intensidade e pressão na bola. Não havia sobra. No máximo o lateral do lado oposto à jogada deixava seu marcador um pouco mais solto para colar na defesa.
A exceção era Gabriel. Ele era o responsável por acompanhar Gerson, mas precisava sempre manter alguma relação com a linha de defesa para poder virar terceiro zagueiro a qualquer momento. Portanto, algumas vezes ele se preocupava mais em ocupar o espaço do que colar em Gerson.
A exceção era Gabriel. Ele era o responsável por acompanhar Gerson, mas precisava sempre manter alguma relação com a linha de defesa para poder virar terceiro zagueiro a qualquer momento. Portanto, algumas vezes ele se preocupava mais em ocupar o espaço do que colar em Gerson.
Chamou a atenção a escolha de Domenec por não usar a tão famosa “saída de 3” com Arão. Como o volante era marcado individualmente por Nathan, talvez a saída de bola em si nem melhorasse tanto, mas arrastar o atleticano descongestionaria o meio, deixando Gerson ainda mais livre.
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Com todo o time atleticano saindo para apertar e preocupado em intensificar a marcação-pressão lá na frente, abria-se um espaço nas costas da defesa que poderia ser explorado por Bruno Henrique e Gabigol, atacantes muito rápidos.
Não é à toa que praticamente todos os lances do Flamengo no primeiro tempo tiveram uma roubada de bola no campo de ataque ou a participação de Gerson solto no meio-campo ou lançamentos em profundidade para os atacantes. Ou tudo isso junto.
Por tudo isso, o Flamengo foi melhor no primeiro tempo. Mas o fator mais importante ainda não entrou na conta aqui: Sampaoli propôs um jogo de intensidade absurda e um ritmo louco. Muito perde-e-ganha, um tanto de caos.
No Brasileirão 2019, o Flamengo teve a cada jogo uma média de 18 posses de bola mais longas que 30 segundos. Contra o Atlético, teve apenas oito. Sim, o time teve 60% de posse, mas foi muito picotada. A bola mudava de dono toda hora.
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Nos seus melhores momentos dentro do jogo, o Flamengo conseguiu se sobressair mesmo nesse cenário, mas a verdade é que o time não conseguiu controlar o ritmo, tomar as rédeas do jogo para si e guiar o fluxo da partida em quase nenhum momento.
Talvez o gol perdido logo no início e o gol contra quinze minutos depois tenham prejudicado psicologicamente. Talvez tudo isso tenha sido potencializado por aqueles fatores citados no começo. Talvez… Não se viu aquele Flamengo sempre consciente, senhor de si e senhor do jogo.
Não é uma novidade total. Em 2019, o Fla nunca era dominado, mas encontrou dificuldades justamente quando perdeu o controle do ritmo, como no 4×4 contra o Vasco, na final da Libertadores e até nos primeiros 30 minutos do 5×0 contra o Grêmio.
Quando o jogo fica caótico, fica difícil. Esse é um ponto que Domenec precisará trabalhar bastante. É bom que ele venha de uma escola justamente obcecada pelo controle dos espaços e do ritmo.
Sampaoli desfez ainda no finzinho do primeiro tempo seu esquema fluido com Gabriel e colocou o volante Jair para intensificar a marcação no meio. Agora sim, um 4-3-1-2 mais estruturado e segurando Gerson na marra. Sem as rédeas da partida, o Flamengo só foi entrando cada vez mais na pilha. A adrenalina foi subindo, o jogo ficou ainda mais caótico e o segundo tempo foi bastante ruim.
Algumas finalizações completamente precipitadas deram o tom da etapa final. Enquanto isso, o Atlético resolveu encaminhar o jogo para o fim. Onze das 24 faltas cometidas pelo time mineiro aconteceram nos 30 minutos finais. O jogo tão interessante acabou ficando nervoso. De certa forma, ficou até chato. Faz parte… Já na segunda metade da etapa final, Domènec tentou atacar num 2-3-5 com os laterais por dentro. O Flamengo não conseguiu empurrar o Atlético para trás e o jogo não fluiu. Há uma ideia ali, mas isso é assunto para outro post.
Pouca gente entendeu na hora e muitos criticaram depois. Mas talvez, apenas talvez, se Pedro tivesse conseguido dominar essa jogada criada justamente pelo lateral vindo por dentro, Domenec estaria sendo chamado de gênio agora. Futebol é o jogo do detalhe.