Afrouxa a gravata.
Já vislumbra o mortal relaxamento proporcionado por uma tépida ducha, o lasso abandono de ser arremessado à tenra pele da macia poltrona que parece clamar por um abraço, e o descontraído, quase leviano dedilhar no controle remoto à escolha despojada de alguma série ou filme que o irá entreter, enquanto tem à disposição, para sorver sem pressa, o aveludado néctar escocês que se esgueira entre as pequenas geleiras erigidas dentro do robusto copo que repousa ao seu alcance. Enfim, o merecido descanso.
O alarido rebenta aos tropicões, invadindo a sala em gritos que arfam e ventam pra longe qualquer perspectiva de repouso imediato. Sem sequer chegar a desabotoar a camisa, já se percebe envolto por aquela enérgica fúria própria dos adolescentes.
– Paiê, paiê, você precisa me ajudar!
– O que houve agora?
– O Vicente, pai! Ele falou uns negócios lá que eu não entendi direito.
E explica mais ou menos, com palavras meio que tropeçadas, meio que esbarradas, mas que conseguem remeter ao que exatamente o colega do filho quis dizer. Respira fundo, suspira o ar resignado de quem constata que o uísque terá que esperar um pouco.
– Filho, esse Vicente é tricolor igual ao tal Tavinho?
– Não. Vascaíno.
– Tinha certeza. Mas vamos lá. Vou logo avisando que esse assunto é espinhoso e chato. E outra. O que eu sei é o que saiu em jornal e revista. É coisa de bastidores e tal. Tem certeza que quer mesmo saber?
– Quero. Quero calar a boca do Vicente.
– Ok. Então senta aí. Tudo começa quando chega perto da época da eleição.
– Ihhhh… Política… (torce o nariz)
– Eu avisei. Agora fica quieto. Então, chega a época da eleição. Acontece que o Presidente já havia prometido que iria apoiar o cara do Conselho para ser seu candidato de Situação. Mas, na hora da coisa se definir, o vento passou a ventar de outro jeito e o arranjo teve que ser desfeito. E o Presidente passou a dar aval pra outro.
– Eita. Tipo House of Cards?
– É. Quase isso. Evidentemente, o cara do Conselho não gostou nadinha da novidade. E, como você deve saber, o pior inimigo é o ex-amigo.
– Faz sentido.
– E com isso o Conselho, que era aliado do Presidente, começou a fazer oposição. Nas maiores e menores coisas. Tipo picuinha mesmo.
– Essa parte já entendi. Só não sei aonde isso vai chegar.
– Tenha calma. Vocês são muito agoniados. Antes de seguir, preciso lhe explicar uma coisa. Normalmente, em toda organização que lida com dinheiro, as despesas precisam ser comprovadas. É o que se chama de prestação de contas.
– Sim. Lá no grêmio da escola tem isso.
– Pois é. Só que esse processo normalmente envolve uma burocracia, tem autorização, tem tramitação de documento, essas coisas. E muitas vezes é preciso fazer uma despesa rápida, comprar uma passagem, resolver um imprevisto, essas coisas. Então, para esses casos a exigência de formalidades é menor. E no Flamengo havia, na época, um mecanismo desses, o que era normal. O Dirigente, dependendo do cargo, podia avalizar uma despesa sem comprovação, assinando apenas uma espécie de vale. Com aquilo, o gasto estava coberto, sem precisar de nota etc.
– Hum…
– Pois. O cara do Conselho descobriu que havia uma ressalva importante num relatório fiscal, justamente por causa de um desses vales. Pelo que falaram no jornal, parece que o vale era de um valor mais alto que o normal.
– Imagino que ele tenha feito um inferno com isso.
– Exatamente. Convocou uma reunião e exigiu explicações, avisou que iria recomendar a reprovação das contas, e coisa e tal. Como você deve imaginar, foi uma reunião com dedo na cara, cadeira voando, troca de amabilidades, filho disso, filho da quilo, enfim.
– Tipo como tá o twitter hoje em dia.
– É, só que presencial (risos). Continuando, a questão é que havia a tal lacuna, e com a pressão criada a Situação precisaria se explicar. Lembre que era ano de eleição, e ânimos inflamados poderiam desaguar em resultados imprevisíveis.
– Hum… Interessante. E como a Situação saiu dessa sinuca?
– Aí é que está o caso. Não saiu. Na verdade, tentou remendar da pior forma possível.
– Acho que estou alcançando.
– Pois é. Instruídos sabe-se lá por quem, alguns conselheiros ligados à Situação começaram a espalhar a história de que os tais vales haviam sido emitidos a título de “Despesas com a Decisão”. Como você sabe, fomos campeões naquele ano. Segundo esses conselheiros, seriam gastos para evitar que o rival subornasse arbitragens. Outros insinuaram algo ainda mais amplo, envolvendo jogos contra times menores.
– Inacreditável! Como alguém torna público uma sandice dessas?
– Justamente para que não se torne público.
– Oi?
– Veja. Qual foi a ideia do “gênio” que inventou esse delírio: criar uma “verdade” constrangedora, fazendo com que o assunto fosse abafado ali mesmo no Conselho. Afinal, se isso vazasse, o dano à imagem do clube seria devastador. Ou seja, a Situação cria uma história tão pesada que o assunto morre “nas internas” e acaba esquecido.
– Só que deu tudo errado.
– Lógico. O Conselho deixou vazar tudo pros jornais, que, evidentemente, deitaram e rolaram com a “revelação” e, mesmo sem nenhuma prova, esparramaram em páginas e páginas.
– Mas que m…
– A coisa logo saiu de proporção. Criou-se um escândalo que durou semanas. Teóricos da conspiração criavam as mais lisérgicas elucubrações. Os rivais, especialmente os vascaínos, que foram os vices naquele ano (como se fosse novidade), grasnavam como gansos. Algo tinha que ser feito.
– Caramba, que confusão…
– Depois de dias de silêncio, o Presidente resolveu dar a versão oficial. Admitiu ter usado o dinheiro para incentivar times menores a “endurecer” jogos contra os grandes. Prática que se sabia recorrente, mas não menos reprovável. E que hoje, inclusive, é oficialmente ilícita.
– Isso resolveu o problema?
– Mais ou menos. A explicação meio que esfriou o assunto na imprensa, mas internamente o clube seguiu em chamas. O Conselho não aceitou a versão do Presidente e exigiu devolução do dinheiro. Pressionado e diante da perspectiva da abertura de um processo de destituição, ele acabou ressarcindo o valor aos cofres do clube, colocando assim ponto final na questão.
– E no fim das contas como essa história terminou?
– Bem, o Presidente não conseguiu eleger seu sucessor. O cara do Conselho também acabou, com o tempo, perdendo relevância. A crise acabou fazendo emergir uma espécie de candidatura “de consenso”, na figura de um antigo cacique político. Ah, o TJD indiciou o Presidente, houve um julgamento, mas ele acabou absolvido. Por unanimidade.
– E o Flamengo nisso tudo?
– Ora, aquilo acabou com o ano do time. O Flamengo estava em alta, tinha acabado de ser campeão, era líder do seu grupo no Brasileiro. A confusão arrebentou com a moral do elenco, teve jogador se dizendo com vergonha de sair na rua, o clima no vestiário azedou, o time começou a cair pelas tabelas e por pouco não perdeu a vaga pra fase seguinte.
– Mas aquele campeonato que o Flamengo ganhou. Teve alguma coisa estranha?
– Teve nada. O time foi ajudado em alguns jogos (“recebeu” um pênalti escandaloso contra o Goytacaz, por exemplo), foi prejudicado em outros (perdeu um jogo pro Botafogo com um gol irregular no último minuto), enfim. Coisas que acontecem em qualquer campeonato.
– Mas o Vasco chora aquela final.
– Vasco sempre chora qualquer coisa que perde pra gente. Sempre. Desde o Valido. Final da Taça Guanabara eles ganharam e teve um gol nosso mal anulado. Na Taça Rio eles chiaram de um pênalti que o zagueiro deles meteu a mão na bola. Na Final em si, nós reclamamos de um pênalti no primeiro jogo, eles de um pênalti no último, ambos não marcados. Fora isso, nada de mais. Nada de nada. Inclusive repetiram o árbitro em dois jogos, porque foi elogiado. O que torna mais delirante essa coisa toda.
– Tá certo. Tá tudo muito bom, tudo muito bem. Só faltou explicar uma última coisa.
– Achei que tinha falado tudo.
– Não. Afinal de contas, o tal dinheiro foi parar onde?
– Isso eu não vou dizer. Porque não sei. Saíram coisas no jornal. Afirmações, desmentidos, enfim. A questão é que a despesa não precisava comprovar. Então o erro está aí. Na falta de limite. Fora isso, não é responsável alimentar especulação.
– Pois é. Mas acabou que o grande prejudicado de tudo isso foi o Flamengo.
– Exatamente. O Flamengo teve quase manchado um título conquistado limpamente no campo, o time perdeu rendimento, a imagem da marca foi inapelavelmente arranhada, tanto que até hoje alguém nos aporrinha com essa história. Como aliás você acabou de perceber.
– Quer dizer que tudo isso aconteceu por causa de uma briga política.
– Perfeito. Você entendeu. E aprenda uma coisa. Quando a coisa envolve política e poder, o interesse da instituição só é relevante até a página 2. É cru, é triste, é deprimente. Mas é o que é.
– Tá bom, pai. Valeu. E eu falo o que pro Vicente?
– Você sabe se virar. Vascaíno adora pagar de vestal, mas em bastidores e política? Não dá, né?
– Beleza. É, ele não vai se criar, não.
Vê o filho sair, pensativo. Mas não se arrepende com a “aula” de realpolitik que acaba de ministrar. Às vezes é importante mostrar às pessoas que o fervor por certos ideais acaba por se tornar nocivo. Mas, de qualquer forma, algo parece agora lhe martelar à cabeça. Zumbir à mente. E, enquanto enfim toma o rumo do banho, vai balbuciando, como que absorto.
“O Flamengo… No fim quem se ferra é o Flamengo… Só o Flamengo…”
Adriano Melo escreve seus Alfarrábios todas as quartas-feiras aqui no MRN e também no Buteco do Flamengo. Siga-o no Twitter: @Adrianomelo72
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