Corria o ano de 1969. Vejam vocês: — 1969! A barbicha de Che Guevara estava, então, em plena vigência; Twiggy, com suas minissaias e Betty Friedan, no peito e na raça, ateavam paixões e fogo aos sutiãs; e as mulheres, aqui e alhures, se libertavam e nos deleitavam com vestimentas ínfimas e fetichizáveis. Convenhamos: — grande época! grande época!
Pois bem. Foi em 1969, tempo dos cabelos compridos e das roupas unissex, dos iê-iê-iês em primeira audição e do ventre livre de Leila Diniz grávida em Ipanema, que nasceu o urubu. Em tempo retifico: — nasceu o urubu como mascote do Flamengo. De fato, o urubu (Coragyps atratus) ave catartiforme da família Cathartidade, pertencente ao grupo dos abutres do Novo Mundo, já existia há muito tempo, embora não gozasse das mais altas reputações. Foi como uma resposta às ofensas racistas que se atiravam à torcida do Flamengo, desde sempre majoritariamente preta, pobre e progressista, que nasceu o mascote hoje consagrado.
Naquele tempo tudo era diferente. Por exemplo: — a torcida tinha uma ênfase, uma malemolência e uma ginga de escola de samba. E acontecia esta coisa sublime: — quando havia um gol, ou qualquer outro momento memorável durante uma partida, os torcedores entoavam sambas enredos numa harmonia instintiva de fazer maestros roerem-se de inveja. Eis o que empobrece rítmica e melodicamente o futebol atual: — a ausência dos sambas enredo entre os cânticos de arquibancada. Difícil, muito difícil, ouvir-se um samba entoado em uníssono nos estádios. Por sua vez, os torcedores quando não estavam cantando as rebuscadas letras dos sambas de antigos carnavais comportavam-se como crianças em ônibus de excursão escolar. Lançando bolinhas de papel e xingamentos inocentes entre si.
O jovem flamenguista Luiz Otávio Machado não considerava os xingamentos tão inocentes assim. Em especial os que traziam embutido um indisfarçável racismo. Disposto a desagravar à sua torcida, Luiz e alguns amigos organizaram uma caçada ao urubu na antiga favela da Praia do Pinto, que cercava com seus barracos o Leblon e a sede do Flamengo na Gávea. Mal sucedidos na primeira tentativa, foram até o Lixão do Caju, onde conseguiram, enfim, capturar o arisco pássaro. No domingo, dia 30 de junho de 1969, clássico contra o Botafogo (que ainda não era tão freguês do Flamengo como hoje) contrabandearam a ave dentro de um bandeirão para dentro do Maracanã.
Minutos antes do apito inicial libertaram o bicho, que decolou das arquibancadas à esquerda das tribunas de honra e sobrevoou altaneiro, com uma pequena bandeira vermelha e preta atada aos pés, o gramado do Maior do Mundo. À medida que o pássaro negro executava preguiçosamente suas evoluções aéreas sobre o relvado ia conquistando os corações do povo Flamengo e incendiando as arquibancadas. Em poucos segundos o “É Urubu! É Urubu! É Urubu!”, insulto recorrente das torcidas adversárias, foi expropriado para sempre pela revolucionária torcida do Flamengo.
Nas multiétnicas bocas rubro-negras ele se arredondou, ganhou consistência, musicalidade e harmonia. Depois de encantado pela mística vermelha e preta, o insulto infame, criado para envergonhar os humildes se transmutou em brado de autoafirmação. O que para os adversários fora deboche virou demonstração de orgulho e o mal disfarçado racismo da injúria voltou-se como flecha vingadora na direção de quem covardemente o lançara. Black is beautiful. Numa consagração instantânea, o Urubu dominou o Maracanã pela primeira vez e incendiou para sempre a torcida do Flamengo. A torcida e, forçoso dizer, os jogadores.
Ah, os jogadores! Em 1969 a bola tinha uma importância suprema e inegociável. Quantas vezes o craque esquecia as táticas e as estratégias traçadas pelos senhores treinadores em mesas de futebol de botão e saía em velocidade com a bola dominada em direção à meta adversária. Os dois como amantes adúlteros em fuga, driblando, fintando, iludindo, se negando a passa-la aos companheiros melhor colocados. Egoístas, arrogantes e dispostos a provar sua capacidade de resolver tudo sozinho em detrimento do que fora acordado no vestiário os jogadores chamavam para si a responsabilidade. Imbuídos desse espírito Doval e Arílson, na tarde daquele domingo, deram contornos definitivos ao placar que terminou uma incomoda escrita de 4 anos sem triunfos rubro-negros sobre o Botafogo.
Hoje, o homem está muito cônscio de suas próprias limitações, de seu papel estrito e predeterminado dentro de uma coletividade e já não aceita a ferocidade voluntarista dos antigos fominhas. Mas raciocinemos: — em 1969, os milicos dirigiam com violência uma ditadura sanguinária, corrupta e burra, tempos de AI-5, ninguém confiava em ninguém com mais de 30 anos e ainda havia entre nós gente atrasada que se negava a admitir a mera existência do racismo nessa terra de Deus.
Passou-se. E o Flamengo de 2019 joga, muitas vezes com a mesma alma individualista de 1969. Admite, é claro, as convenções táticas que o futebol moderno exige. Mas o comportamento interior, assim como as fugazes demonstrações de gana e garra, o élan que hoje chamamos de raça, são perfeitamente inatuais. Essa fixação no tempo explica a tremenda força e a enorme vulnerabilidade rubro-negra. Note-se: — não se trata de um fenômeno apenas dos jogadores. Mas do torcedor também. Aliás, time e torcida sempre se completaram numa integração definitiva. O adepto de qualquer outro clube recebe um gol, uma derrota, com uma tristeza maior ou menor, que não afeta as raízes do ser. O torcedor rubro-negro, não. Em 2019 se entra um gol adversário, ele se crispa, ele arqueja, ele vidra os olhos, ele agoniza, ele sangra como um Marighela emboscado. E corre para as redes sociais para espalhar sua inconformidade urbi et orbi.
Também é de 1969, da mentalidade anterior à Anistia Ampla Geral e Irrestrita, das Diretas Já e dos 3 Tricampeonatos rubro-negros da era pós Zico, o amor às cores do clube. Nova é a consciência sobre a cor da própria pele. A camisa do Flamengo voltou a ser uma peça de vestuário e, sem ofensas, hoje vale tanto quanto uma gravata. Cada vez mais o Flamengo prova que sua essência não reside na aparência, ela é interna. O que realmente faz a diferença é a consciência da própria cor de quem a enverga.
Para quem ainda hoje é perseguido, vilipendiado e passado para trás pelo simples fato de ser, a melanina da pele é o dom mais valioso. Um troféu que se veste para sempre ao nascer. Há de chegar talvez o dia em que um negro ou uma negra sem camisa não será identificado discricionariamente como torcedor do Flamengo, mas sim como um cidadão pleno de direitos. Bastará a exposição orgulhosa da pele e o respeito por ela conquistado para derrubar definitivamente a Bastilha do racismo, que de inexpugnável só possui a ignorância daqueles que o praticam.
Parabéns, Urubu. Que os seus próximos 50 anos sejam ainda mais honrosos.
Mengão Sempre
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