A história do confronto entre Orlando Penaforte, ex-zagueiro do Flamengo, e Moderato, o ídolo rubro-negro convalescente
Por Adriano Melo
1927.
“É a última palavra do clube?”
“Sim. Sinto muito.”
“Nesse caso, passar bem.”
O jogador deixa a sede do Flamengo e se põe a caminhar. Exibe um misto de irritação e decepção, não entende e nem aceita a atitude de um clube por quem deixou a vida nos gramados. Uns ingratos, remói enquanto castiga com seus pés pesados os pedriscos que eventualmente se interpõem em seu trajeto. Anos de dedicação, de denodo, ajudando o Flamengo a erguer vários troféus e construir sólida reputação, e a troco de nada. Nada, segue bufando enquanto segue seu trajeto aparentemente errático. Mas Orlando Penaforte, apesar de enfurecido e nervoso, já sabe o que fazer, já tem a solução. Campos Sales.
Penaforte sabe dos riscos que está assumindo. O jogador possui uma história no Flamengo, onde se criou, cresceu e se tornou um dos seus principais nomes. Zagueiro de baixa estatura, mas aplicado e vigoroso, comandou junto com Hélcio um sistema defensivo tão eficiente que o levou à Seleção Brasileira. Dois anos antes, participou da espetacular temporada de 1925, em que um Flamengo repleto de grandes jogadores conquistou o Campeonato Carioca e participou de uma histórica excursão a Pernambuco, um time que perdeu apenas três jogos em toda a temporada e marcou quase cem gols. E nesse time Penaforte era um dos ídolos, um dos símbolos da raça flamenga.
Mas a diretoria não lhe deu outra alternativa.
Prestes a se casar e sem o berço de outros futebolistas, Penaforte apenas pediu uma ajuda ao clube. Queria que o Flamengo lhe mobiliasse o quarto, uma espécie de reconhecimento, um bem vindo auxílio à guisa de presente. Mas a diretoria rubro-negra foi irredutível, nada de presentes ou brindes que indiquem favorecimento. Daqui a pouco, outro jogador irá demandar regalo semelhante, e como ficamos? Ademais, é sabido que o clube não nada em dinheiro, não pode sair por aí equipando a vida de seus atletas. Não e não. Infelizmente, o Flamengo nada pode fazer nesse caso.
Amargurado, Penaforte insistiu várias vezes, apelou para outros jogadores e dirigentes, indignado com a recusa de um clube já tido como o mais popular da cidade, e que a cada dia angaria mais adeptos, em lhe providenciar um punhado de armários e criados-mudos. Sua história correu o meio futebolístico, e logo o América lhe bateu à porta. Nós não lhe oferecemos um quarto. Vamos mobiliar-lhe a casa.
Penaforte ouviu a oferta, mas estacou, hesitante. Pediu tempo.
Não é comum jogadores trocarem de clubes para atuarem em rivais, não em um amadorismo que, apesar de agonizante, ainda é cultuado quase religiosamente entre as equipes mais tradicionais do Rio. O zagueiro sabe que, se trocar Paissandu por Campos Sales, irá se tornar um sujeito maldito, traiçoeiro, pouco confiável. Será vilanizado por metade da cidade, e a rigor terá apenas os rubros ao seu lado.
Mas agora, cego de ódio com a empáfia monolítica do Flamengo, irá assumir esse risco. Sim, às favas com o que pensarem. Uma casa mobiliada não é algo a se desprezar. E o América também é time de ponta, de elite. Certamente terá a oportunidade de fazê-lo calar os muitos críticos que certamente irromperão. Penaforte bate à porta da sede americana. Está armado com um sorriso e uma resposta.
* * *
Passa-se a temporada.
O Flamengo vive a primeira grave crise de sua história, após ter sido suspenso por ter disputado um amistoso com o Paulistano, envolvendo-se na briga entre profissionais e amadores. Após forte indignação e pressão, a suspensão foi anulada, mas o estrago já estava feito, o time desmontado, refeito às pressas para a disputa do Carioca, um punhado de tocos de pau defendendo o sagrado manto negro e escarlate, afundando em goleadas nos primeiros jogos, alvo de risos e chacotas por toda a capital. Sem falar que seu principal jogador sucumbe a uma fortíssima apendicite. Aos poucos, aquele grupo se fecha e passa a atuar com uma garra e uma ferocidade poucas vezes vista em uma equipe de futebol. E, com as camisas jogando sozinhas, chega à reta final do campeonato disputando o título.
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Enquanto isso, Penaforte, como previra, se torna um nome proibido. Agraciado com caudalosas vaias e apupos onde quer que seja reconhecido ou mencionado, vê o limitado Hermínio ocupar a camisa rubro-negra que havia sido sua e se tornar ídolo. Com efeito, Hermínio incorpora o espírito daquele time e passa as rodadas enfiando sua cabeça nas pesadas botinas adversárias, enterrando a cara na lama, saindo dos jogos com profundos hematomas e cortes vários. E ovacionado por uma torcida que não se cansa de entoar “hurras” de rejeição a Penaforte. Mesmo sem sua presença no estádio.
E o futebol, quando deseja, sabe ser cruel como poucos em sua refinada ironia.
Passam-se as últimas rodadas. O Flamengo, já embalado e vivendo uma epopeia que agora faz todo o Rio de Janeiro acompanhar, sofrer e torcer (“vai ser histórico ver esses onze cabos de vassoura serem campeões”), chega ao derradeiro embate. Está a uma vitória do título. E o adversário é justamente o América.
O América de Penaforte.
A Rua Paissandu imerge em uma torrente de mentes e corpos ansiosos pelo desenrolar do jogão de logo mais. Três campeões poderão irromper da grande decisão entre Flamengo e América. O vencedor da partida, ou o Fluminense, em caso de empate. A cidade passa uma semana sem desviar os olhos ou o assunto. Só se fala, só se respira, só se ingere a final do maior campeonato de todos os tempos.
Não cabe mais ninguém no pequeno campo dos Guinle. Apinhados, espremidos, pendurados, os torcedores transpiram e respiram o quente e tenso ar dos momentos decisivos. Entra o Flamengo, estádio explode em palmas e gritos de apoio. Alguns reconhecem o bravo Moderato, ainda convalescendo da apendicite, entre os onze do time, e comovidos com a coragem do ídolo, entoam-lhe cantos de aplauso e homenagem.
Entra o América. Um ensurdecedor colchão de vaias encobre Penaforte. São arremessados no zagueiro palavrões, xingamentos, ofensas e até objetos. O time rubro não reage, parece indiferente. A princípio.
Começa o jogo, o Flamengo, mesmo inferior tecnicamente e com Moderato visivelmente no sacrifício, toma a iniciativa, domina o jogo, encurrala o América. Penaforte, muito nervoso, erra passes tolos, dá chutões, é envolvido. Os onze paus de vassoura do Flamengo vão pra cima, vão pra dentro, e logo o artilheiro Nonô abre o marcador, arrebentando de emoção toda a rua, o bairro, a cidade.
A partida segue, o Flamengo não recua, sente o momento, tem que matar logo o jogo. A bola é aberta a Moderato, que arma o chute, faz um meneio e manda o tiro, que sai mascado, vacilante. Penaforte ergue o pé e intercepta a pelota, mas ao invés de reter-lhe a trajetória acaba apenas tirando-a do alcance do goleiro rubro, que impotente apenas contempla o gol acontecendo devagar, rolando indolente em seu canto oposto.
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Flamengo 2-0. Gol contra de Penaforte. O êxtase agora parece jorrar das artérias de cada testemunha, cada torcedor flamengo se sente morrendo um pouco, ao urrar amor, paixão, vingança, fome e sangue pelo seu time campeão. Ajoelhado, prostrado, Penaforte parece sentir todo o peso de uma nação que o subjuga aos ombros. Está quebrado.
O América ainda irá reagir e tornar dramático o final da partida, mas os 2-1 darão ao Flamengo um dos mais festejados títulos de todos os tempos.
A torcida, mesmo em festa, não se esquecerá de Penaforte, homenageando o traidor com um enterro simbólico pelas ruas do Centro do Rio. É uma conquista emblemática, que mostra a todos que, não importa quem chegue, quem saia, quando time e torcida andam juntos, quando a essência flamenga se entranha em sua equipe, bastam as camisas.
Basta o Manto.
O nosso bastião inexpugnável.
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