Por Lucas Alves
Costuma-se dizer que o torcedor rubro-negro que vai ao Maracanã é privilegiado, em comparação ao torcedor de fora do Rio, o tal flamenguista, termo ao qual muitos têm ojeriza. Curiosamente, a vida longe do Maracanã é a realidade de quase toda a nossa torcida, e poucos terão um dia essa oportunidade de ver nosso escrete, seja no Mário Filho ou mesmo em qualquer outro estádio. Mas creio que é nesse ponto que reside um aspecto importante da nossa grandeza.
Tomemos como exemplo a segunda maior torcida do país, reconhecidamente a do Corinthians, com grande parte dos seus torcedores localizados no estado de São Paulo. Sobram, nas demais federações, gatos pingados quando em comparação com torcedores do Flamengo.
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O flamenguista, portanto, está acostumado a ser maioria em suas respectivas cidades no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, pois cerca de 80% de sua torcida de 42 milhões está nessas regiões. Essa realidade, distante da boemia e das favelas cariocas, forjou um Flamengo plural e tão diverso quanto a própria nação brasileira, incapaz de ser analisado sob um único contexto.
Das principais características flamengas, uma delas é a altivez, a autossuficiência, que cartolas e torcedores de times que no geral ostentam passagens pela segunda divisão chamam de soberba. Comparemos com a dupla Gre-Nal, cuja rivalidade futebolística se tornou parte da cultura gaúcha. A raison d’être do gremista ou colorado não é somente que seu time vença, mas ser maior do que o rival, de modo que se um dos clubes “falir”, a cultura do futebol gaúcho sofrerá um baque.
No Flamengo, essas situações não se aplicam a todos os torcedores: um torcedor do Pará não vive a rivalidade com o Fluminense da mesma forma que um carioca, pois não conhece nenhum tricolor. Com o Vasco a rivalidade já foi acirrada, por terem uma grande torcida nas demais regiões do país, mas creio eu que a herança euriquista está impedindo as camisas de saírem do armário. O ponto é: as mais diversas realidades flamengas impedem que o Flamengo seja visto como algo uno.
O torcedor off-Rio conhece a importância histórica dos clássicos, mas não as vive em seu cotidiano. Não é por ser um clássico que um torcedor do interior do Amazonas vai aumentar sua mobilização para o jogo. O que nos mobiliza é ver o Flamengo em seus grandes momentos, é idolatrar o preto e o encarnado.
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Vejam as carreatas pós-títulos feitas no interior do país, em cidades onde não há sequer obrigação do uso de capacete pelo motociclista. Centenas de pessoas vestidas com o Manto Sagrado e seus caronas empunhando bandeiras, enquanto o Hino é tocado em algum som automotivo.
Esse cenário aconteceu em todo o país, é uma manifestação popular, e é patrimônio nosso. Minha avó, no interior do Maranhão, em meados dos anos 80, pagava a uns moleques para que decorassem a rua com bandeirolas vermelhas e pretas, como se fosse festa junina fora de época, e colocava a TV na calçada, para que mais pessoas pudessem assistir ao jogo. Isso quando poucas pessoas tinham condição de comprar uma TV e muitas cidades do interior sequer recebiam sinal das retransmissoras. Minha querida avó, portanto, acompanhou o Flamengo campeão mundial pelo rádio, companheiro habitual da época.
Em cidades do interior onde não havia jornais e revistas, muitos torcedores só foram conhecer o rosto dos jogadores que idolatravam pelas ondas de rádio quando estes já eram multi campeões. Se torcedores de cidades próximas dos grandes centros tiveram facilidade para acompanhar todos os títulos da década de 1980 pela TV, muitos de meus parentes mais velhos tiveram que esperar até 1987.
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Dito isso, as demais agremiações esportivas brasileiras cumprem bem o seu papel, de representarem suas respectivas comunidades. É comum que torcedores de clubes regionais estranhem pessoas que não sejam nascidas no Rio torçam para o Flamengo.
Naturalmente, veem o mundo sob a sua ótica e, ignóbeis, não compreendem que o berço do Flamengo era muito pequeno para ser sua casa. De um clube de bairro a um colosso onipresente por todo o subcontinente brasileiro. O núcleo duro do Flamengo, do CNPJ e da sede social, existe dentro da realidade do Rio de Janeiro, da FFERJ e seus meandros, e continuará assim, mas a razão da existência do Flamengo não está limitada à Cidade Maravilhosa.
É para oferecer uma visão alternativa de país, baseada no amor e na comunhão da diversidade de sotaques, credos e culturas que o Flamengo segue existindo. É para fazer o sertanejo e o ribeirinho torcerem da mesma forma e vibrarem nos mesmos lances. Não há fronteira imaginária, não há sotaque, não há raça, não há religião, não há nada, mas nada intransponível o suficiente que impeça o Flamengo de ser amado à vontade.
De tal modo que é fácil afirmar que, exceto pelo esporte bretão em si, não há fenômeno cultural maior na história do Brasil do que o Flamengo.