Blog Cultura RN | Por Caio Sartori – Publicado originalmente no Puntero Izquierdo, em 24 de maio de 2017
Estreia do Campeonato Brasileiro de 1984, o jogo entre Flamengo e Palmeiras foi o único daquele sábado, 28 de janeiro. O noticiário do dia, como se fosse 2017, dava destaque para o aumento de saques do FGTS e a morte de um turista alemão no Catete, bairro da região central do Rio de Janeiro. Em campo, no velho Maracanã, vitória rubro-negra com gol de Tita. O público, modesto se comparado às multidões que costumavam ir ao templo sagrado do povo carioca, era de pouco mais de 36 mil torcedores. A chuva fechou aeroportos e inundou ruas — inclusive as de acesso ao estádio.
Sinédoque carioca, o Maracanã pré-Copa expunha as vísceras da cidade desigual. Mas era, de modo contraditório, o estádio possível — porque acessível. Ali, com geraldinos, arquibaldos e detentores de cadeiras numeradas, estavam representados todos os estratos sociais do Rio e os conflitos que lhes são intrínsecos. Tratava-se, enfim, de uma experiência democrática.
E ambiente democrático, com forte apelo popular, era muitíssimo bem-vindo na campanha pelas Diretas Já, que lutava pela redemocratização política do Brasil e pedia eleições diretas para presidente depois de duas décadas de uma ditadura militar que deixou como trágica herança o cerceamento das liberdades políticas com o golpe de 1964. Três dias antes da partida inaugural do campeonato, 300 mil pessoas compareceram à Praça da Sé, em São Paulo, para o comício que consolidou o movimento.
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A partida no Maracanã também marcava a estreia do goleiro argentino Ubaldo Fillol com a camiseta do Flamengo. Recém-chegado do Argentino Juniors, o arqueiro campeão do mundo pela Albiceleste em 1978 viu seu novo time jogar com Leandro, Mozer, Figueiredo e Júnior; Andrade, Adílio e Tita; Lúcio, Edmar (Nunes) e João Paulo. Depois de ganhar Libertadores, Mundial, três Brasileiros e mais algumas taças menores, Zico havia partido para a Udinese no ano anterior e deixava ao rubro-negro um novo ciclo, sem seu maior ídolo.
Naquele dia, contudo, as atenções de quem estava na arquibancada do então Maior do Mundo também se voltaram para um grupo de torcedores que ingressou pelo setor central (hoje chamado de Leste) e, bandeiras ao alto, caminhou até o ponto clássico da Raça Rubro-Negra, no escanteio à esquerda das cabines de televisão. A espécie de desfile com trapos presos a bambus costumava ser uma tradição do Maracanã de outros tempos.
Era a turma da Fla Diretas, primeira torcida a surgir em prol da redemocratização no período final da ditadura militar. A aparição dessa mistura irremediável de política e futebol deu as caras três meses antes da votação da Emenda Dante de Oliveira no Congresso, em abril daquele ano. Os deputados iriam decidir se o povo poderia escolher nas urnas o Presidente da República.
Movimento estudantil rubro-negro
O país aguardava e se movimentava pela instauração da Nova República. Enquanto isso, no Rio de Janeiro, um grupo de jovens universitários ligados ao Partidão, como era chamado o clandestino Partido Comunista Brasileiro (PCB), jogava uma pelada em Botafogo, Zona Sul da cidade. A maioria era rubro-negra e frequentava o estádio para ver Zico, Júnior, Adílio e companhia. Eram tempos de ouro nos gramados e na arquibancada — e caminhavam para isso também na política nacional, se tudo desse certo.
A bola rolava no campo da Associação Scholem Aleichen (ASA), reduto da esquerda judaica. Havia ali gente da UFF, da UERJ, da UFRJ e da PUC, onde o Partidão era mais forte no movimento estudantil. Entre eles, vários nomes que seriam conhecidos anos depois: Bussunda, comediante morto em 2006; seu irmão, Sergio Besserman, economista e ambientalista; Claudio Manoel, outro do Casseta e Planeta; Luiz Augusto Veloso, presidente e diretor de futebol do Flamengo dali a algum tempo; e Henrique Brandão, que, anos depois de estudar História na UFF, foi mais um a se enveredar pela política da Gávea, como vice nas gestões Veloso e Patrícia Amorim.
Boa parte passou por experiências na militância anti-regime militar. Besserman foi o principal dirigente secundarista do Partidão nos tempos de Colégio de Aplicação da UFRJ — e continuou tendo papel importante na legenda quando ingressou em Economia na PUC. Veloso, também estudante de Economia, mas na UFRJ, trabalhara no jornal Movimento, que, com textos de gente como Moniz Bandeira, Chico Buarque e Fernando Henrique Cardoso, entraria para a história da imprensa alternativa do período ditatorial.
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Ligados à política e rubro-negros fanáticos, os rapazes (cerca de “20 ou 30”) decidiram unir o útil ao agradável com a criação da Fla Diretas — mas não se recordam precisamente de como decidiram fundá-la. É provável, dizem, que tenha surgido de uma brincadeira com o nome do jovem zagueiro Figueiredo, xará de sobrenome do último dos ditadores militares, o general João Baptista Figueiredo. “Nosso Figueiredo é melhor que o deles. A ideia era essa. Mas ele, coitado, não sabia de nada”, recorda o jornalista Henrique Brandão, à época estudante de História na UFF.
Fato é que, após algumas reuniões, o grupo da pelada começou a botar o movimento rubro-negro-democrático para funcionar, confeccionando bandeiras e adquirindo materiais de bateria. Mas, antes da estreia na arquibancada, precisou buscar dois avais: o do clube e o da associação das torcidas organizadas do Flamengo. Para o encontro com o presidente George Helal, que hoje dá nome ao recém-inaugurado centro de treinamento do Ninho do Urubu, os jovens contaram com a ajuda de Marcio Braga, que exerceu os dois primeiros de seus seis mandatos como presidente de 1977 até 1980.
Já no cargo de deputado federal pelo PMDB de Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, Marcio, que integrava a Comissão das Diretas na Câmara, foi quem tratou de tranquilizar Helal. “O Marcio entendeu tudo. O Helal não entendeu nada. Ficou com medo. Tentou resolver dando uns lápis rubro-negros de presente para cada um de nós. Eu gostei muito [risos], mas não adiantou. Mas depois o Marcio explicou melhor qual era o barato, disse que não ia ter nada a ver com o clube”, conta Sergio Besserman, atual presidente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Numa tarde de abril último, Besserman recebeu o Puntero Izquierdo em seu escritório. Ele lembra que, antes do encontro com Helal, o período de mobilização do movimento rendeu uma ida do núcleo-duro da torcida à concentração do time em Teresópolis, Região Serrana do Rio. “O Figueiredo topou ser patrono. Ele teve uma reação de não entender, mas depois que entendeu, aceitou. O Leandro [lateral-direito] deu muita força. O Júnior [lateral-esquerdo] eu lembro que também deu apoio, mas o Leandro deu uma força mais consistente, politizada”, recorda. Hoje, o maior lateral direito da história do clube não lembra de sua influência, mas “parabeniza a torcida” pela iniciativa.
Da Raça ao Congresso, passando por Henfil e… Christiane Torloni
Numa arquibancada rubro-negra historicamente fragmentada em várias torcidas, nenhuma conseguiu, de 40 anos para cá, ter o mesmo destaque da Raça Rubro-Negra. E partiu dela, à época capitaneada pelo fundador Claudio Cruz, o maior apoio interno à Fla Diretas — na reunião das torcidas, no campo ideológico e na arquibancada. Em outras organizadas, alguns achavam que a intenção do movimento, claramente efêmero, era se tornar de fato uma torcida fixa, com lugar na arquibancada e anseios de buscar hegemonia.
Com o suporte do ‘Pulmão da Arquibancada’ e sob alguns olhares tortos, a Fla Diretas foi tomando forma e ganhou um mascote para chamar de seu. Pelas mãos ilustres do cartunista rubro-negro Henfil, um dos fundadores do PT, o tradicional urubu da Gávea passou a carregar consigo um voto na boca, com o rastro do seu voo formando o nome da torcida no ar. A arte virou camiseta, plástico-adesivo de carro e até carteirinha, com direito a número de inscrição e “função” dentro do movimento. Henfil, presenteado com o papel plastificado de número 10, feito Zico, era o “diretor de criação”.
Enquanto as carteirinhas funcionavam como brincadeira interna dos fundadores, as camisetas e os plásticos se espalhavam pelo Maracanã. Até a última reforma, voltada para os grandes eventos, o estádio tinha apenas duas rampas de acesso, popularmente chamadas de Bellini e Uerj. A primeira, apesar do nome associado ao zagueiro ídolo do Vasco, era a entrada clássica dos flamenguistas, que por ali subiam até ocupar a arquibancada à esquerda da filmagem televisiva. Foi nessa rampa que a Fla Diretas passou a se estabelecer antes das partidas e a colocar os produtos à venda. O resultado mostrou que o apelo popular pela volta da democracia era enorme.
“Fiquei impressionado. Saía muito o material. Quando o jogo começava, já tinha acabado. Toda a torcida começou a perceber o que a gente queria, que era ser um movimento político dentro da torcida do Flamengo”, explica Henrique Brandão. “[Contra o Palmeiras] Fomos andando para a Raça, e foi legal que quando chegamos lá todo mundo cantou: ‘É Fla Diretas! É Fla Diretas!’ Foi a primeira torcida pelas Diretas Já num estádio.”
Depois do jogo de estreia, no final de janeiro, o movimento foi crescendo. Mas a turma, que concentrava algumas dezenas de torcedores — e torcedoras — voltou a assistir às partidas no lugar da bancada onde costumava ficar nos anos anteriores à fundação da torcida — mais ou menos onde se estabelece, hoje, a Urubuzada, na altura do outro escanteio do mesmo gol da Raça. O grupo inicial, mais fanático pelo Flamengo, passou a ganhar a companhia de muitos amigos que não estavam tão preocupados assim com a primeira temporada rubro-negra depois da saída de Zico. “Passou a ser, acima de tudo, um programa legal”, diz Besserman.
Quem também aderiu ao movimento foram os funcionários do bandejão da PUC, que, controlado pelo DCE, costumava ser aparelhado pelos líderes estudantis. “Chegamos a ter uns 300 e poucos (membros na arquibancada)”, afirma o irmão de Bussunda. “Ao mesmo tempo em que discutíamos política, discutíamos Flamengo. Era uma sensação muito boa: apoiando o Flamengo e derrubando a ditadura. Melhor que isso é difícil imaginar.“
Do universo político-partidário, um dos maiores incentivadores da Fla Diretas foi o hoje deputado federal Miro Teixeira (Rede-RJ), rubro-negro que teve o apoio do Partidão ao se candidatar ao governo do Rio pelo PMDB, em 1982 — quando a campanha histórica de Leonel Brizola (PDT) avassalou as bases populares. Na visão concisa de Miro, que ainda frequenta o Maracanã quando tem tempo, é impossível separar o futebol da política. “São as pessoas. As pessoas que estão no futebol também estão pensando no desemprego”, diz. É dele, por sinal, a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) por eleições diretas que está em discussão atualmente em Brasília.
Se Figueiredo era o padrinho, faltava uma madrinha. Rubro-negra, famosa e envolvida com política, a atriz Christiane Torloni despontou como melhor opção. E o contato não foi difícil. Ela era casada com o psicanalista Eduardo Mascarenhas, que anos depois ocuparia cadeiras na Câmara pelo PDT e pelo PSDB. Durante os anos mais duros da ditadura, Mascarenhas exerceu papel importante ao lado da mãe de Bussunda e Sergio Besserman, a também psicanalista Helena Besserman Vianna, na oposição ao regime.
Helena chegou a denunciar o envolvimento de outro colega de profissão, Amilcar Lobo, nas sessões de tortura da Casa da Morte, em Petrópolis. Estima-se que mais de 20 presos políticos tenham morrido no casarão da Rua Arthur Barbosa. Inês Etienne Romeu, morta em 2015, foi a única sobrevivente. “A própria Sociedade de Psicanálise do Rio, em vez de ficar preocupada com o cara que ajudava a tortura, começou a perseguir a minha mãe. Não toda a sociedade, mas alguns dirigentes. Formou-se então um grupo de solidariedade. Nesse grupo, havia dois psicanalistas de outras sociedades de psicanálise, que eram o Hélio Pellegrino e o Eduardo Mascarenhas”, explica Sergio Besserman.
Tancredo é a solução
Com camiseta, bandeira, padrinho e madrinha, a Fla Diretas crescia progressivamente. Até que veio o dia 25 de abril de 1984. Derrubada na Câmara, a Emenda Dante de Oliveira adiava o sonho da população de escolher o Presidente da República. A mobilização popular, porém, ainda serviria para impulsionar o nome de Tancredo Neves (PMDB) ao cargo máximo do país — um sopro de esperança e renovação.
Contra ele, na disputa indireta no Colégio Eleitoral, estava Paulo Maluf (PDS, antigo Arena, o partido do regime). “O que não se fala muito, mas nós sabíamos, é que as Diretas não iam passar no Congresso. Sabíamos que não tinha maioria. Mas também sabíamos que o movimento dividiria o regime e elegeria o Tancredo nas eleições indiretas”, explica Besserman.
Marcio Braga também dedicou-se, a partir dali, a apoiar Tancredo, cujo nome foi abraçado pelos setores democráticos. Com a falta de modéstia que lhe é característica, o ex-presidente, marcado pela abundância de títulos, afirma: “Nós (Flamengo) popularizamos o Doutor Tancredo. O que o Flamengo abraça, a população abraça.” Parceiro do ‘Senhor Democracia’ Ulysses Guimarães, Marcio gozava da fama após mandato bem sucedido no clube, onde o grupo da Frente Ampla Pelo Flamengo (FAF), da qual fazia parte, fincou em 1976 uma força política que encontra ressonância até hoje nos corredores da Gávea.
“Quando chegamos ao clube, já dizíamos que a democracia começaria pelo Flamengo. Até o Médici foi votar contra nós na presidência do clube (no candidato Hélio Maurício). Nós todos éramos da linha da democracia”, diz Marcio, de 81 anos, que chegou a ser secretário de Leonel Brizola no Rio, quando filiou-se ao PDT, e de Itamar Franco no governo federal.
Com a derrubada da emenda no Congresso, a turma da Fla Diretas passou a se mobilizar, indiretamente, pela campanha tancredista, com a criação do Comitê Jovem do Tancredo. Nessa mistura de causas — movimento estudantil, torcida e comitê — , que no fundo tinham o mesmo objetivo final, uma coisa ajudava a outra. Para Luiz Augusto Veloso, que ingressaria na vida política do Flamengo em 1986 — via Marcio — e se tornaria presidente do clube em 1992, a experiência estudantil foi importante para a formação do movimento rubro-negro pelas Diretas.
“Todo mundo tinha o mínimo de experiência de organização. E a Fla Diretas influenciou de modo recíproco, uma coisa de mão dupla. Ela não existiria se as pessoas não fossem militantes”, diz. “Essas coisas se organizam com um sentido básico de mobilização. Era mais fácil encarar essas conversas com as demais torcidas para quem tinha que encarar reunião de movimento estudantil.”
Cinco anos antes da campanha pelas Diretas ganhar notoriedade, o Flamengo já tinha protagonizado, de modo mais discreto, uma experiência de luta democrática em âmbito nacional: o surgimento da Flanistia, de 1979, que chegou a ser monitorada pela polícia do regime, como mostrou reportagem do jornal ‘Extra’ em 2015 com base em documentos do Serviço Nacional de Informações (SNI) descobertos pela Comissão Estadual da Verdade (CEV).
Fiscalizada pela ditadura entre os dias 29 e 31 de maio, a iniciativa rendeu uma manifestação do grupo na porta do Maracanã, aos pés da estátua do Bellini, antes de um amistoso entre Brasil e Uruguai. E as bandeiras ideológicas da torcida também reverberaram dentro da política da Gávea, com Marcio Braga na presidência. Houve, por parte da instituição, a tentativa de organizar partida e show beneficentes para ajudar os anistiados. Os eventos não aconteceram. Mas, assim como o movimento dos torcedores, chegou a ser registrado em documento pelo regime, que chamou os encontros de “Guerra Psicológica destinada a condicionar o público contra o Governo”.
Fla-Flu das Diretas
Com a disputa entre Tancredo e Maluf pulsando, a final da Taça Guanabara de 1984, em 23 de setembro, entrou com tudo na disputa política. Flamengo e Fluminense protagonizaram o Fla x Flu das Diretas, a face mais repercutida do movimento iniciado pela Fla Diretas meses antes. Campeão brasileiro daquele ano depois de duas conquistas consecutivas do rival, o tricolor se viu envolto numa polêmica que irritou sua torcida.
Torcedor do Flu (e do Grêmio), o general Figueiredo havia arranjado um bico para o preparador físico Nazareno Barbosa Tavares, que o salvou de um infarto, na comissão técnica do clube das Laranjeiras. Como Maluf representava, de certa forma, a continuidade do regime, Nazareno tratou de articular um apoio dos jogadores ao candidato do PDS, com a promessa de que ele criaria o Ministério dos Esportes. O atacante Washington, ídolo nas Laranjeiras, os laterais Branco e Aldo e o volante Jandir participaram de visita a Maluf em Brasília, no início da semana que antecedeu a decisão. Visita organizada por Nazareno, é claro.
O goleiro Paulo Vitor, que não respondeu à reportagem, foi além. Ausente no encontro com o deputado em Brasília, ele foi à sede da TV Manchete, onde Maluf estava na véspera da partida, e posou para foto abraçado com o presidenciável. Romerito e Delei, por sua vez, não concordaram com a iniciativa — perceberam que o candidato do PDS tinha o povo contra si. Nazareno, o articulador, ainda ficaria marcado na História como um dos sequestradores do empresário Roberto Medina, em 1990. E por ter articulado com o tráfico a possibilidade de o ex-governador Moreira Franco (PMDB), hoje ministro e braço direito de Michel Temer, fazer campanha em áreas dominadas pelo poder paralelo.
Nos escritos de Eduardo Galeano sobre a magia do Fla x Flu, um trecho resume bem o ambiente que se formou nos idos de 1984: “(…) o Fluminense havia gerado sua própria maldição, e a desgraça não tinha mais remédio.” Como não podia deixar de ser, a malufada tricolor virou motivo de provocação por parte dos flamenguistas. Na arquibancada rubro-negra, o recado era claro: “O Fla não Malufa”, dizia uma faixa. “Eu me lembro que meus amigos tricolores ficaram putos”, recorda Henrique Brandão, que não foi ao jogo porque estava num comício de Tancredo no Recife. Mas a torcida tricolor, de encontro com o elenco, também se posicionou pró-Tancredo e esticou a faixa “Maluf é corrupção, Tancredo é a solução”, parecida com a “Muda Brasil, Tancredo já” erguida no lado rubro-negro.
Foi, em suma, um Fla x Flu político. Com gol de Adílio e desempenho espetacular de um jovem Bebeto — apontado como o substituto de Zico — , a taça foi para a Gávea. Na matéria de capa da revista ‘Placar’, cuja redação era dirigida pelo democrata Juca Kfouri, a vitória foi destacada pelos contornos políticos, com o título “A tancredada do Fla”. Nada inesperado em se tratando da revista que botou o futebol no certame da redemocratização. “Eu fui ao palanque (das Diretas), eu arregimentei o povo nos esquentas dos comícios e pus ‘Placar’ inteiramente na campanha. Fizemos capas com Pelé e Sócrates”, recorda Kfouri, sobre a cobertura daquele período. Antes do Fla x Flu, o técnico Zagallo vociferou aos jogadores rubro-negros: “Vamos dar uma tancredada neles!”
Dali em diante, uma tragédia atrás da outra. Curtindo os dias de folga em dezembro do agitado ano de 1984, o zagueiro Figueiredo morreu, aos 24 anos, em acidente de avião com o irmão de Bebeto, quando passavam pela Região Serrana do Rio em direção a Salvador. Meses depois, Doutor Tancredo, enfim escolhido indiretamente para conduzir o país por caminhos republicanos, morreu no hospital antes de assumir de vez o Palácio do Planalto. O Brasil ficou nas mãos de José Sarney.
Com o país redemocratizado, alguns fundadores da Fla Diretas continuaram envolvidos com política, em menor ou maior grau. Sergio Besserman ingressou no PSDB nos anos de 1990 e foi diretor do BNDES e presidente do IBGE no governo Fernando Henrique Cardoso. Hoje, o economista ainda se considera um “cara de esquerda”, mas faz questão de frisar que rechaça a dicotomia entre Estado e mercado, estatização e privatização.
Henrique Brandão se identificou por um tempo com o PT, até se aproximar do Psol há alguns anos — chegou a ser assessor do deputado estadual Eliomar Coelho na Assembleia Legislativa do Rio. Claudio Manoel, o mais à direita, não poupa críticas ao PT e ao que chama de “cultura estatal” em seu blog pessoal.
De 1984 para cá, 33 anos se passaram. Neste maio de 2017, Maluf, deputado federal pelo PP de São Paulo, está condenado a mais de sete anos de prisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Parte da população pede Diretas Já devido às denúncias contra o presidente Michel Temer. E a tão sonhada Nova República parece se tornar mais velha e desgastada a cada dia.