Por Emmanuel do Valle – Publicado originalmente no Flamengo Alternativo
O Rio de Janeiro ainda era a capital do estado da Guanabara naquela quinta-feira, 29 de julho de 1971. A construção da Ponte Rio-Niterói caminhava lentamente. Naquele tempo, não havia televisão em cores no país e ainda vigorava o acento diferencial (“êste”, “nôvo”, “jôgo”, “fôrça” etc).
Onze dias antes, Pelé havia se despedido da Seleção num amistoso contra a Iugoslávia no Maracanã. Ainda naquele mês, dois outros gênios, Jim Morrison e Louis Armstrong, deixavam a vida para adentrar a eternidade. No mesmo ano, Roberto Carlos lançava o LP com “Detalhes”. Chico Buarque lançava “Construção”. E Caetano e Gil estavam exilados em Londres.
Também naquele 29 de julho de 1971, num Flamengo x Vasco pela Taça Guanabara no Maracanã, o então técnico rubro-negro, o paraguaio Fleitas Solich, lançou entre os profissionais um menino miúdo, bom de bola e que já chamava a atenção nas preliminares de juvenis chamado Zico. Sabem quem é?
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Para este blog, mais importante do que citar os títulos conquistados – incluindo o Mundial Interclubes, dez anos depois – e o patamar estratosférico ao qual Zico alçou o clube é contar um pouco do contexto da estreia do Galinho. Como estava o Flamengo naquele 1971.
E decididamente não estava bem. Solich retornara ao clube (o qual comandara por quase 400 partidas entre abril de 1953 e janeiro de 1962, levantando um tri carioca e um Torneio Rio-São Paulo) há pouco mais de um mês, e tinha nas mãos um elenco destroçado.
Depois de um 1970 atravessado como uma montanha-russa de emoções (contadas aqui e aqui), as relações de dirigentes, torcida e jogadores com o técnico anterior, Yustrich, estavam as piores possíveis. Como exemplo, o atacante argentino Doval, um dos ídolos, havia brigado com o treinador por conta dos métodos extenuantes de preparação física, e acabou emprestado até o fim do ano ao Huracán portenho.
Para compensar as baixas, o time – sem dinheiro e sem levantar o Carioca desde 1965 – reforçou-se modestamente ao longo do ano. O centroavante Roberto Miranda, do Botafogo, veio trocado por empréstimo até o meio do ano pelo lateral-esquerdo Paulo Henrique; o ponta-direita Buião (ex-Atlético-MG) e o meia-armador Tales foram trazidos do Corinthians, e o atacante Zé Eduardo, promessa do Bahia, chegou trocado por empréstimo por um ataque inteiro (!), que incluía o ex-titular Dionísio.
No segundo semestre, para o Brasileiro, vieram outro ponta-direita, o ex-botafoguense Rogério, o meia Renato (irmão de Amarildo, o “Possesso” da Copa de 62), emprestado pelo America, e o meia-atacante Samarone, ex-ídolo do Fluminense, entre outros.
A esses jogadores se juntavam nomes como o goleiro Ubirajara, o lateral Murilo (patrimônio do clube, assim como Paulo Henrique), o zagueiro paraguaio Reyes, o volante Liminha, o meia Zanata, e os atacantes Nei (que também defendeu Corinthians e Vasco e é pai do ex-jogador Dinei, aquele) e Fio (que no ano seguinte viraria “Maravilha” na canção de Jorge Ben). Havia ainda o então curinga Rodrigues Neto, logo fixado na lateral-esquerda, e jogadores folclóricos como o zagueiro Onça e o lateral Tinteiro, tido como revelação na época.
Além disso – e como quase sempre acontece na história do clube – havia uma penca de talentos das categorias de base prestes a ser lançada (e desperdiçada, como também quase sempre acontece na história do clube, ainda mais pelo momento ruim de então). Nesse balaio estava Zico, de 18 anos de idade.
A Taça Guanabara, pela qual Fla e Vasco jogaram (na preliminar de Fluminense x Botafogo – que coisa, não?) era, diferentemente de hoje, um torneio separado do Campeonato Carioca, e jogada às vezes antes, às vezes depois do certame principal, como foi o caso de 1971. Foi disputada em pontos corridos, turno único, pelos seis principais times (ou cinco, depois que o Bangu abandonou o torneio para excursionar pelos Estados Unidos) e conquistada pelo Fluminense, menos irregular que os outros.
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Antes disso, no Carioca, o rubro-negro havia terminado na quarta posição, atrás de Flu (campeão), Bota (vice) e… Olaria! O time anil, que contava com o zagueiro Miguel e os meias Afonsinho e Roberto Pinto, fez sua melhor campanha na história da competição. E o nosso rival daquele 29 de junho? O Vasco terminou em oitavo, na lanterna do turno final.
Foi nesse clima de “salve-se quem puder” que Fla e Vasco entraram em campo naquela tarde-noite, diante de apenas 18.603 espectadores. Nei abriu o placar para o Fla na metade do primeiro tempo, recebendo passe do garoto Zico superando milimetricamente a linha de impedimento vascaína, e Rodrigues empatou para o rival pouco antes do intervalo. Na etapa final, Fio nos deu a vitória em cima do laço num chute forte. O rubro-negro seguiu com chances na mini-competição, e mandou um bye bye, so long, farewell pro cruzmaltino.
No primeiro Brasileirão, que começaria dali a dez dias, o Galinho de Quintino disputou 15 das 19 partidas da equipe, todas como titular, e marcou dois gols, ambos no Nordeste (contra o Bahia – seu primeiro com a camisa do Fla – e contra o Santa Cruz). Mas como a fase era horrorosa e a bagunça imperava (Zico foi testado em todas as posições do ataque, inclusive pelas pontas), o time não conseguiu se classificar entre os 12 que seguiriam para a etapa seguinte da competição e acabou na 13ª colocação.
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No ano seguinte, o garoto jogou poucas vezes. O novo técnico do Fla, Zagalo, decidiu que Zico retornaria ao time juvenil (com a qual acabou campeão carioca). Só em 1974, liderando uma jovem equipe treinada pelo ex-zagueiro do clube Joubert, é que o Galinho se firmou definitivamente como craque. A boa campanha rubro-negra no Brasileiro daquele ano, a Bola de Ouro da revista Placar e o título do Campeonato Carioca, em dezembro, atestavam que a camisa 10 já lhe vestia muito bem. E o resto, como vocês sabem, é história.
E que história.
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Ficha do jogo de estreia de Zico:
Flamengo 2 x 1 Vasco
Local: Maracanã (preliminar de Botafogo x Fluminense)
Juiz: Aírton Vieira de Morais
Gols: Nei 20, Rodrigues 44 do 1º tempo; Fio 45 do 2º tempo.
Flamengo: Ubirajara; Murilo, Washington (Onça), Fred e Tinteiro; Liminha e Tales (Chiquinho); Nei, Zico, Fio e Rodrigues Neto. Técnico: Fleitas Solich.
Vasco: Andrada; Fidélis, Moisés, Renê e Batista; Gaúcho (Benetti) e Pastoril; Jaílson (Valfrido), Ferretti, Dé e Rodrigues. Técnico: Paulo Amaral.