O dia era 16/12/2013. Do lado de fora do prédio do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), no Centro do Rio, torcedores acompanhavam o julgamento que mudaria totalmente a parte de baixo da tabela do Brasileirão daquele ano. Tricolores e lusitanos eram maioria, mas também haviam torcedores do Flamengo apreensivos e outros rivais presentes tanto pela curiosidade quanto pelas brincadeiras.
Os tricolores comemoraram o resultado do julgamento, gerando a lamentação dos outros. O Fluminense, rebaixado para a segunda divisão no dia 08/12/2013, livrou-se da degola por pouquíssimos pontos. Portuguesa e Flamengo acabaram punidos, sendo a primeira rebaixada em 17º com 44 pontos, e o segundo ficando em 16º com apenas um ponto a mais que a Lusa.
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O cerne de toda essa confusão se iniciou ainda com a bola rolando, quando Flamengo e Portuguesa escalaram irregularmente os atletas André Santos e Héverton, respectivamente, para a última rodada do campeonato brasileiro. Na época, vários memes ligavam o Fluminense ao chamado “tapetão”, termo que faz alusão à prática de mudar um resultado construído dentro de campo.
De uns anos para cá, percebe-se que cada vez mais esse evento é distorcido com o objetivo de (sem novidade) culpar o Flamengo. Os amigos tricolores, obviamente, bradam isso à plenos pulmões, de forma a afastar a pecha de mais uma vez se livrarem das divisões anteriores de maneira, digamos, peculiar.
O que me deixa (não muito, na verdade) surpreso é como torcedores de outros times adotaram esse discurso. Por isso, o objetivo do texto é contextualizar o período e explicar o porquê dessa tese de responsabilização do Flamengo ser rasa e revisionista.
Contexto: o Flamengo sob nova direção
O Flamengo deu início em 2013 o primeiro mandato de Eduardo Bandeira de Mello. Considerado como um “ano de transição” pela diretoria, o objetivo era arrumar as contas e tentar aumentar a arrecadação do clube. Na época, a dívida do clube girava em torno de R$750 mi, incluindo 50 processos na esfera federal e quase R$30 mi penhorados.
Nesse cenário, o clube buscava montar um time que pudesse disputar em bom nível a temporada em questão, porém de forma que não comprometesse as contas. Para isso, a saída de Vagner Love foi um momento chave.
Love havia feito boa temporada no ano anterior. Artilheiro do time com 24 gols, o jogador era bastante estimado pela torcida. Porém o custo do atleta, entre salário e luvas, girava em torno de R$1 milhão ao clube, que já estava com problemas para cumprir com esses valores, além do 13º dos demais atletas.
Por esse motivo, a nova diretoria arranjou o retorno do atacante ao CSKA da Rússia. Além de conseguir o perdão de R$16 mi que ainda faltavam ao rubro-negro quitar com o clube russo, o próprio jogador abriu mão da dívida com o Flamengo.
A venda ajudou a aliviar um pouco a folha salarial do time, que partiu em busca de opções mais baratas para compor o elenco.
A campanha do Fla dentro de campo
No gramado, o rubro-negro teve uma campanha de altos e baixos e com uma coroação ao final. Não chegou nem na final do Campeonato Carioca, vencida pelo Botafogo. No Campeonato Brasileiro, antes do julgamento, ficou no meio de tabela, atingindo no máximo a 7ª posição. Durante a competição o time chegou a ocupar a zona de rebaixamento.
A Copa do Brasil foi o diferencial. O time enxuto, porém com alguns bons jogadores, fez uma campanha memorável e venceu o tri da competição contra o então Atlético-PR em pleno Maracanã com gols de Elias e Hernane Brocador, ambos na parte final do jogo. Porém, para efeitos deste texto, o que precisamos lembrar dessa partida é a expulsão de André Santos, fruto de uma confusão com o jogador Ciro do Furacão, logo após o primeiro gol do Flamengo.
O início dos problemas
Acreditando que resolveria a questão da suspensão, o Flamengo viajou para a Bahia sem André Santos para enfrentar o Vitória quatro dias depois da final da Copa do Brasil. Na ocasião, o rubro-negro baiano saiu vencedor do jogo pelo placar de 4×2. André Santos foi julgado pelo STJD na sexta-feira (06/12), um dia antes da última rodada do Campeonato Brasileiro, e recebeu punição de um jogo. A partida contra o Vitória, na visão do STJD, não contava com a punição aplicada.
A diretoria do Flamengo, numa das maiores irresponsabilidades já vistas no clube, acreditou poder reverter a situação e o jogador seguiu escalado para enfrentar o Cruzeiro. O jogo não valia absolutamente nada para nenhum dos dois clubes, uma vez que o clube mineiro já era campeão brasileiro com antecedência e o Flamengo estava estagnado no meio da tabela. A partida ficou marcada pela troca de faixa dos campeões (Copa do Brasil e Brasileiro) e terminou empatada em 1×1.
A última rodada
O Fluminense venceu o Bahia fora de casa no dia seguinte, porém não foi o suficiente para escapar do rebaixamento. Na história do Campeonato Brasileiro, seria a primeira vez que um time cairia um ano após vencer o torneio.
A Portuguesa, outra personagem da história, havia cometido o mesmo erro do Flamengo na última rodada. O meia Héverton, expulso contra o Bahia, foi poupado na rodada seguinte contra a Ponte Preta, porém recebeu mais um jogo de suspensão na mesma sessão que penalizou André Santos.
A infração ocorreu na última rodada contra o Grêmio, quando Héverton entrou no decorrer do segundo tempo. Ambas as equipes terminaram a competição perto da metade da tabela, longe do perigo do rebaixamento, porém o erro dos dois deu início à polêmica que perdura até hoje.
O julgamento
Em recente matéria no site, Lucas Tinôco descreveu de forma esplêndida e clara como se deu o julgamento e todo o contexto anterior a ele. Por conta disso, não vou entrar em detalhes.
No dia 16/12/2023 confirmou-se a punição às duas equipes. Ambas perderam 4 pontos (3 pontos mais a quantidade obtida pelo jogo da infração) além de multa de R$1 mil. Os torcedores do Fluminense comemoraram a decisão do lado de fora do prédio do STJD, como mostrado no início do texto.
Para os torcedores da Lusa, a decepção e a injustiça foram os sentimentos predominantes. Tanto Flamengo quanto Portuguesa recorreram das decisões, porém a mesma ficou mantida.
O Ministério Público abriu um inquérito no ano seguinte alegando acreditar que a diretoria da Lusa havia sido cooptada a escalar o jogador irregularmente de maneira proposital. Fluminense e Flamengo eram os principais suspeitos. A falta de provas garantiram o arquivamento do caso em 2016
Alguns dias após a decisão do STJD, o Flamengo emitiu nota oficial afirmando que a decisão era um “desserviço ao esporte”. Michel Assef Filho, advogado do Flamengo no caso, manifestou sua insatisfação através de e-mails vazados. Nas mensagens o advogado afirmou ser um erro o Flamengo subir o tom dessa maneira com a instância superior, uma vez que o jurídico do clube ainda estava recusando a decisão.
Conclusão
É necessário deixar algo claro aqui: a escalação do André Santos para um jogo que não tinha mais nenhum valor para o Flamengo precisa ser lembrado como uma das maiores irresponsabilidades da história recente do clube. Um erro absolutamente evitável que, por pouco, não causou a queda inédita de uma equipe que vivia um período de grande endividamento.
Diante disso, é necessário sempre combater a versão mentirosa que alega que o Flamengo foi o beneficiado da História. O Fluminense terminou o dia 08/12/2013 rebaixado e fez questão de participar do processo para rebaixar outra equipe em seu lugar.
Obviamente a mais prejudicada da história foi a Portuguesa. A equipe entrou numa espiral de crise, gestões ruins e queda de divisões. Hoje a equipe disputa a divisão principal do Campeonato Paulista.
Colocar a culpa no Flamengo é uma manipulação argumentativa sem tamanho. Não é possível afirmar que uma equipe que perdeu 4 pontos, caiu de 11º para 16º, ficou a um ponto do rebaixamento e ainda recebeu uma multa foi beneficiada de alguma coisa. Tem apenas um clube que precisa agradecer à decisão do tribunal em alterar o que foi decidido em campo: é o mesmo clube cujos torcedores comemoraram essa decisão como um título na tarde do dia 16/12/2013.
Marcos Paulo Neves é professor e historiador formado pela UNIRIO. Apaixonado por futebol e pelo Clube de Regatas do Flamengo, procura falar sobre futebol, política e história de maneira clara e não revisionista.
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