Em 5 de novembro do ano que vem eu espero estar comemorando os 30 anos de um evento monumental, por seu contexto e significado: os dois gols de Marcelo Bujica contra o Vasco naquela tarde de 5 de novembro de 1989, no primeiro clássico em que o baiano Bebeto jogaria contra seu ex-clube, o Flamengo. Bebeto havia se transferido de uma forma pouquíssimo elegante, em uma daquelas jogadas em que a gente vê o estilo de Eurico Miranda mesmo que ele esteja escondido embaixo da mesa. A transferência para o Vasco causou revolta, não só pelo fato de um ídolo (já havia sido campeão estadual de 1986 e campeão brasileiro de 1987, tendo feito o gol do título em cima do Internacional naquela famosa tarde chuvosa em que Andrade viu o caminho da luz) ir para um rival – mas pela forma pouco católica, digamos assim.
Bom, veio o primeiro clássico, e a expectativa era gigantesca. Me lembro como se fosse ontem. Mais: lembro que o jogo passou para o Rio e eu vi pela TV. Pesava ainda a frustração de junho, em que vimos o Botafogo ser campeão depois de 21 anos (a história do jogo eu conto no meu livro jamais lançado, “O Velho e o Zico”), e já nos assombrava o fato de que Zico não voltaria a vestir a nossa camisa a partir do ano que vem. Apenas uma assombração, que se confirmaria dolorosamente.
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Mas Zico ainda teve tempo para dar o passe do gol de…Bujica. A velha história rubro-negra do menino recém-saído dos juniores que, bem, vocês sabem: decide um jogo e faz milhões de outros meninos felizes. Aquelas coisas que justificam a famosa frase de Juca Kfouri, “o futebol é a coisa mais importante das coisas menos importantes”. Em um mundo onde valores são efêmeros, passageiros, onde princípios são totalmente voláteis, creio que a frase periga, tal e qual na expressão de Neil Young, “burn out than fade away”. Melhor que ela queime, nos incendeie, se torne uma coisa dentre as mais importantes, do que desaparecer.
O malandro e leão-de-chácara (expressão maravilhosa do império) João Antonio “pintava” a sinuca como expressão da vida. “A sinuca é um pouquinho de tudo isso aí”, disse em uma crônica de Malagueta, Perus e Bacanaços. Ou talvez tenha sido em “Leão de Chácara” mesmo.
O futebol nos dá isso. Se quiser, pode parar de ler e ver o vídeo, o curta de 12 minutos produzido pelas Arthur Muhlenberg e Pedro Asbeg (eu e Marcele aparecemos muito rapidamente, eu usando um óculos redondo que jamais voltarei a usar) diz muito mais do que eu poderia dizer. Porque os dois gols de Bujica foram uma espécie de poesia moral divina, foi como se Deus não quisesse dar castigo e sim uma doce reprimenda de Pai. “Meninos, não briguem – toma aqui gols de Bujica”. E por quase 90 minutos (ele foi substituído) ele não foi apenas o menino magro, negro, esguio, que diante de 60 mil pessoas explodiu, jogando contra o Vasco de Acácio, Bebeto, Roberto Dinamite, Quiñones e, pasmem, o nosso Andrade. Ele foi um instrumento de Justiça e Fé, da Magnética sagrada.
E essa capacidade do futebol de incensar os ídolos até o Olimpo e depois deixá-los voando sozinhos ou até caindo no esquecimento é que o torna um esporte que transcendente a si. O ídolo sabe que pode viver dentro daquele momento para sempre, como escreveu certa vez Paul Auster (em “O inventor da solidão”), “dentro daquela música para sempre”. O ídolo reconhece isso, o verdadeiro ídolo. Rondinelli sabe que será amado para sempre pelo gol de 1978 (aliás, quarenta anos este ano). Nunes sabe que está em nossos corações de forma incondicional pelos gols de 1980 e 1981 (vários clientes). Petkovic, com toda a antipatia que vem com ele, sabe que viverá para sempre em nosso Panteão pelo que aconteceu em 27 de maio de 2001.
Eles sabem que não daremos mais do que isso a eles – e sabem que isso é o suficiente.
Os gols de Bujica representam o rubro-negrismo de uma forma profunda, mais do que nós mesmos conseguimos alcançar. É como o grito do primeiro soldado a desembarcar na Inglaterra depois de ser salvo do cerco em Dunkirk, é o rugido dos aliados desembarcando na Normandia, é a afirmação de nossa identidade como se tivesse sido escrita com o sangue dos antepassados.
E o próprio Bujica entende isso. Em 21 de janeiro de 2006, dia de seu aniversário, quando a maior parte das cenas deste curta foi gravada, o levamos para um almoço com outros confrades (um grupo restrito de amigos de longa data). Lá, confraternizamos, bebemos vinho, e diante do homem ali, sentado no sofá, tão amigado que já havia mandado um dos nossos – pelo telefone – ir tomar no rabo (perdão, senhoras, coloquei “rabo” mas a palavra foi outra), Bujica chorou. Distante da família no aniversário, reencontrou a ele mesmo, e se tornou nosso ídolo pela segunda vez, ao dizer em tom de desabafo, olhando para o passado inteiro e se apegando a um segundo:
– Eu fiz um gol com passe de Zico. Para mim, isto bastou.
Há 29 anos, fomos muito, mas muito Flamengos, todos. Como sempre seremos. Obrigado, Bujica!
PS – Não deixem de ver o sensacional curta de Pedro Asbeg e Arthur Muhlemberg
Gustavo de Almeida é jornalista desde 1993, com atuação nas áreas de Política, Cidades, Segurança Pública e Esportes. É formado em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense. Foi editor de Cidade do Jornal do Brasil, onde ganhou os prêmios Ibero-Americano de Imprensa Unicef/Agência EFE (2005) e Prêmio IGE da Fundação Lehmann (2006). Passou pela revista ISTOÉ, pelo jornal esportivo LANCE! e também pelos diários populares O DIA, A Notícia e EXTRA. Trabalhou como assessor de imprensa em campanhas de à Prefeitura do Rio e em duas campanhas para presidente de clubes de futebol. É pós-graduado (MBA) em Marketing e Comunicação Empresarial pela Universidade Veiga de Almeida. Atualmente, escreve livros como ghost-writer e faz consultorias da área de política, além de estar trabalhando em um roteiro de cinema.
Imagem destacada no post e nas redes sociais: Divulgação
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