É nos jogos grandes que os grandes aparecem.
Domingo a tabela agenda Fluminense x Flamengo, no Maracanã. Uma partida que tem tudo para se tornar histórica. Seja pelo posicionamento das equipes na tabela, seja pelo momento atual, seja pelas declarações polêmicas que têm esquentado a semana dos dois clubes.
Todos os prognósticos apontam para um jogo sensacional. Épico. Inesquecível.
E, de certa forma, os palpites estão certos.
O Flamengo não vive seus melhores dias. Com os jogadores envolvidos com uma série de amistosos que demandam longas e cansativas viagens, o atual Campeão Estadual, Brasileiro, Sul-Americano e Mundial tem apresentado sensível queda de rendimento. É bem verdade que há momentos como os 3-0 sobre o Botafogo (inesquecível olé no primeiro encontro após os 6-0 de novembro passado), ou um vistoso 8-0 no Madureira. Também é verdade que o time lidera a Taça Guanabara, um ponto à frente de Vasco e Fluminense. No entanto, algumas atuações recentes acendem uma luz de preocupação na torcida e chamam a atenção, negativamente, da crônica. O rubro-negro foi recentemente derrotado pelo Americano (0-1) em Campos, venceu a duras penas o Volta Redonda no Maracanã (enganoso 3-1 conseguido nos minutos finais) e, na última rodada, sofreu para virar em cima do Bonsucesso (3-2) em Moça Bonita, com direito a um gol extremamente discutido de Adílio aos 45 da segunda etapa, uma cabeçada no travessão que quicou no solo e saiu, lance prontamente confirmado como gol pelo controverso árbitro Luís Carlos Gonçalves, o Cabelada. Para complicar, uma estafante viagem a Assunção durante a semana, para enfrentar o Olímpia em um amistoso. O Flamengo vence os paraguaios (2-0), mas o desgaste pode ser um fator negativo.
Do lado das Laranjeiras, mal se contém a euforia. Após um desastroso, quase melancólico, primeiro semestre, o tricolor parece dar sinais de recuperação. Com o que sobrou do dinheiro da venda de Edinho, monta uma equipe barata, que começa a dar liga nas mãos do treinador Lula (ex-jogador, atacante do forte Internacional dos anos 70 e do próprio Fluminense, anos antes). Embalado, o Fluminense vem de resultados expressivos (3-0 Campo Grande, 5-0 Americano, 4-0 Portuguesa) e exala otimismo. Buscando capitalizar esse bom momento e injetar ainda mais confiança em seu jovem plantel, Lula inicia uma “guerra de nervos” pelos jornais, fustigando o rival.
“Vi os últimos jogos do Flamengo. Time deles não assusta. Dependem demais de Zico. Ademais, andam ganhando jogo com gol que não foi. Disso tenho medo. Dentro de campo, somos favoritos.”
É usual, diante de declarações do tipo, que o rival “provocado” recorra a clichês como o trabalho em silêncio, a colocação de jornais nas paredes do vestiários, entre outras manjadas artimanhas motivacionais. O Flamengo opta por não seguir nada disso. Quem retruca é o próprio Presidente.
“Não estou entendendo o Fluminense. Ganha dois ou três jogos e já quer pagar de grande. Pois pra mim continuam com o mesmo timinho. Domingo vão apanhar de muito. Vai ser um treino.”
As bravatas do dirigente rubro-negro espirram nos jogadores. Mesmo os comedidos Zico e Júnior resolvem soltar o língua: “Esse time do Fluminense, com muito, mas muito boa vontade, é a terceira força do futebol carioca. Estão bem longe de nós e um pouco abaixo do Vasco. O resto é conversa pra vender jornal”
Enquanto dirigentes, jogadores e membros de comissão técnica vão batendo boca (e ajudando a promover o clássico), uma personagem resolve escolher o silêncio. Carpegiani, treinador do Flamengo, que começa a sofrer algumas críticas veladas acerca do desempenho do time, sabe que, mais do que nunca, precisa de uma vitória no Fla-Flu. De preferência, com boa atuação. As declarações fortes estão dando à partida um viés de confronto aberto. Para piorar, Lula (que é seu amigo pessoal, ex-companheiro dos tempos de Inter), segue com sua deliberada tática de tentar tirar o equilíbrio emocional do Flamengo.
“Soube que o Flamengo vem com dois volantes. Isso é um sinal de que nos respeitam e nos temem. Vamos partir pra cima, vamos sufocar. Não terão espaço para respirar.”
Com efeito, Carpegiani testou em Assunção um meio-campo com Andrade, Vítor e Zico, deslocando Adílio para a esquerda, saindo Lico, poupado por uma pancada. Satisfeito com o resultado, pensa em mantê-la para o Fla-Flu. Mas há outras alternativas. Além de Lico, que é dúvida, Nunes está voltando da cirurgia no joelho e já pode ficar à disposição. Caso deseje manter o artilheiro no banco, a opção é seguir improvisando Peu. Na direita, Tita poderá seguir no time, ou o irrequieto Wilsinho poderá ser lançado. Carpegiani testa uma série de variações e recusa-se a dar qualquer pista. “escalação, só quando entrar em campo”. Sério e calado, faz treinos reservados e conversa. Conversa muito com seus jogadores.
Aqueles habituados às coisas da Gávea percebem. Os olhos do treinador estão marejados de sangue.
Finalmente chega o dia em que Fluminense e Flamengo duelarão pela liderança da Taça Guanabara, que abrirá o caminho para o título do turno e a consequente vaga às finais do Estadual. O Maracanã está belíssimo, esfuziante, ensolarado, colorido. E trajado em gala. 122 mil pagantes.
Valquir Pimentel trila o apito.
* * *
Os passos são arrastados. As feições, sombrias, compõem um semblante taciturno, que contrasta brutalmente com a postura loquaz dos dias de prelúdio do clássico. Os olhos parecem perdidos, a dicção tateia gorgolejante em busca de alguma palavra que consiga minimamente explicar o que acaba de acontecer no sagrado relvado do Maracanã. Sem êxito. O treinador apenas balbucia, aos ávidos microfones que teimam em lhe negar a tão ansiada paz, frases desconexas, com pouco sentido aparente.
“Eu falei… Não era pra avançar… Eles foram… Deu no que deu… Time deles queria isso… E nós caímos na armadilha… Mereceram… Mas eu falei, eu falei…”
O placar eletrônico do Maracanã segue reluzindo, na forma de um implacável epitáfio em letras feéricas e garrafais, “FLUMINENSE 0 FLAMENGO 3”. Mas a mensagem transmitida pela luminosa engenhoca não chega nem perto de traduzir, de exprimir, de definir o mais completo, o mais inapelável, o mais irretorquível massacre que se fez presenciar em toda a Temporada de 1982 no Maior Estádio do Mundo. Uma surra técnica, física, moral e acima de tudo tática. O Flamengo acaba de quebrar a espinha do adversário. A derreter-lhe as entranhas.
Do outro lado, o principal responsável pela escovada sorri, estranhamente tímido, talvez assustado com a repercussão da obra que concebera e que seus comandados souberam executar com tanta perfeição.
Carpegiani entrou em campo com os tais dois volantes. Mais, manteve Wilsinho na ponta-direita e improvisou Tita na posição de centroavante, um “falso nove”. No entanto, a verdadeira surpresa, o real “pulo do gato”, não se deu com a formação que enviou a campo. Mas com o que fez com esses onze jogadores.
O Flamengo iniciou o jogo em postura completamente retraída. Carpegiani mandou Wilsinho, Tita e Adílio formarem uma linha mais adiantada e recuou para formação “de defesa” os demais jogadores. Isso criou um buraco na intermediária do Flamengo. Ávidos e plenos de confiança, os fluminenses avançaram, ocupando todos os suculentos espaços colocados à sua disposição. Foram com todo mundo. Começaram a criar chances, perder gols. O Flamengo sabia que precisaria sofrer um pouco. E sofreu. Cantarele fez defesas. Zagueiros foram pra bicuda. E, a cada dificuldade flamenga, os tricolores avançavam mais e mais. Atacavam com oito, nove. Volantes viravam meias, laterais se tornavam pontas.
A presa estava definitivamente atraída.
A armadilha do falso domínio territorial já havia sido usada outras vezes (como, por exemplo, no dia que o Flamengo deu 6-0 no Botafogo). Mas a artimanha mais letal, mais desconcertante, mais espetacular, ainda iria começar a se mostrar.
Aos poucos, o Flamengo foi saindo para o jogo, trocando passes, envolvendo. Mas algo bizarro parecia acontecer. Zico estava posicionado como volante, ao lado de Andrade. Recuava e começava a meter lançamentos longos a Wilsinho ou Adílio. Tita voltava para a meia, para fazer a armação. Vítor se projetava como um “camisa 10” autêntico. E foi como um ponta-de-lança que o “volante”, após bela troca de passes, aproveitou um rebote em um chute de Adílio, deu um corte em Aldo e, como um atacante, bateu seco, no canto, para abrir o placar, aos 17 minutos.
Pouco depois do gol, Wilsinho levou uma pancade e teve que sair. E Carpegiani completou seu plano, colocando Lico em campo. Assim, o Flamengo passava a estar escalado com Cantarele, Leandro, Marinho, Mozer e Júnior; Andrade, Vítor e Zico; Lico, Tita e Adílio. Dois volantes, quatro meias, NENHUM atacante de ofício. E seu jogador mais ofensivo, Zico, atuando como volante, enquanto Vítor atuava mais solto. Mas ainda haveria mais.
A alucinante movimentação do Flamengo não parecia conhecer limites. Júnior, que sempre atuara avançado, participando das ações do meio, dessa vez ficou preso, cuidando do perigoso ponta Robertinho. Com isso, o zagueiro Mozer passou a participar de triangulações pelo lado esquerdo do ataque. Quando Mozer ia, Adílio voltava e Tita abria. Ou Lico. Não havia centroavante. Pelo lado direito, o Flamengo armava jogadas de ataque com Leandro e o zagueiro Marinho, enquanto Lico voltava para a lateral, fazer a cobertura. Zico, sempre como regista, cantando, lançando e dando esporro. Os volantes Delei e Rubem Galaxe, confusos, sem saber se adiantavam para marcar os lançamentos do Galinho ou se guardavam suas posições. Enquanto a marcação do Fluminense batia cabeça, o Flamengo desfilava em campo. Uma sequência rápida e antológica de passes, todos de primeira, terminando numa cabeçada perigosa de Tita, Maracanã indo abaixo. O Flamengo e seus globettroters da bola. Mesmo o rabugento comentarista Márcio Guedes, sempre pronto a trazer uma palavra crítica, parecia se render, “a atuação do Flamengo na tarde de hoje é irrepreensível.”
E os gols saindo, um atrás do outro. Após mais uma alucinante troca de passes, a sobra com Adílio, o passe pra Zico, vindo de trás, o Galinho emulando Pelé pro Capita Torres e rolando a bola com desdém, com nojinho, para a bomba de Andrade. 2-0. Logo depois, Zico apanhando a bola na intermediária, Mozer e Marinho se projetando pra receber na frente, a bola na direita pra Lico, a entrada “em facão” driblando a defesa, o toque de lado para Marinho finalizar como ponta-direita. 3-0, aos 34 minutos do primeiro tempo. O Flamengo dizimava o Fluminense em 17 minutos.
Era uma atuação de almanaque. O Flamengo praticava naquele Fla-Flu a coisa mais parecida, em gramados brasileiros, com o futebol do mitológico Carrossel Holandês de Rinus Michels, um jogo de movimentações verdadeiramente revolucionárias, o estado da arte da perfeição técnica e tática.
Foi demais para o torcedor Edgar. Trôpego, esbaforido, o geraldino tricolor driblou policiais e seguranças, cortou jogadores de Flu e Fla e se aproximou do árbitro. Não queria agredir. Não queria xingar. Seu olhar porejava súplica. “Parem com isso, pelo amor de Deus. Respeitem meu Fluminense!”, repetia, aos prantos. Implacável, a torcida flamenga cantava, ao som ritmado e gostoso de uma percussão em festa, “Queremos seis! Queremos seis! Queremos seis!”
Carpegiani, agora mais calmo, está no vestiário, sentado, expressão tranquila. Ri quando se lembra da história de Edgar, diverte-se com os comentários de algum torcedor gaiato. Responde com calma e inusitada simpatia a todas as insistentes perguntas dos repórteres, “Por que não apertou o ritmo? Por que não deu de seis?”, e lembra que o Fluminense é um grande time, e coisa e tal, e tal e coisa, que o Flamengo vem cansado de viagens, que tinha que reduzir o ritmo, “Marinho e Mozer é a nova dupla de ataque, professor?”, e que isso foi exaustivamente treinado, que ele tinha que surpreender o amigo Lula, que o Flamengo tinha um plantel fácil de trabalhar, e as respostas protocolares vão se sucedendo, “e a Seleção, Carpegiani? Você se considera pronto pro lugar do Telê?”, e aí o semblante se torna sério, parece pouco à vontade, não gosta de falar do assunto, prefere a discrição, “se vier, será no tempo certo”.
As luzes se apagam, e Carpegiani enfim vai deixando o estádio. Postura ereta, séria, a satisfação da missão cumprida. A tarefa de mostrar, mais uma vez, que o Flamengo possui um treinador à altura de seu exuberante elenco. Um comandante em condições de criar estratégias capazes de surpreender e desnortear seus adversários. Um “professor” respeitado como um dos melhores profissionais do país, a despeito de sua pouca experiência, sempre invocada em contraponto à miríade de taças conquistadas.
Carpegiani abre a porta do carro, acomoda-se. O melhor em campo do Fla-Flu dá a partida e ganha o rumo de casa.
Sim, é nos jogos grandes que os grandes aparecem.
Adriano Melo escreve seus Alfarrábios todas as quartas-feiras aqui no MRN e também no Buteco do Flamengo.
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