Alan Sugar é um magnata londrino que fez fortuna nos anos 80 fabricando computadores pessoais no Reino Unido. Depois que a sua empresa superou o valor de 1,2 bilhão de libras esterlinas ele resolveu fazer o que realmente gostava: comprou seu time de coração, o Tottenham, 2ª maior torcida de Londres, que estava à beira da falência. E fez uma promessa: dali em diante, o clube seria gerido como um negócio como outro qualquer, ou seja, gastaria apenas os recursos que conseguisse arrecadar e teria lucros todos os anos.
Sugar ficou lá por 16 anos (sendo 10 como o presidente do time), até que se encheu de vez, vendendo sua parte e declarando haver desperdiçado sua vida nesse tempo todo. Mas, justiça seja feita, Sugar cumpriu rigorosamente a sua promessa. O Tottenham nunca mais teve problemas financeiros e todos os anos teve um pequeno lucro. Foi administrado rigorosamente dentro dos princípios da boa governança.
A parte ruim da história é que nos 10 anos que Sugar deu as cartas o Tottenham ganhou apenas 1 Copa da Inglaterra e passou quase sempre no meio da tabela do Campeonato Inglês, muito atrás do Arsenal, o time de maior torcida de Londres e seu maior rival. A torcida Yid (de Yiddish, para relembrar os vínculos do time com a comunidade judaica) detestou o período de Sugar com todas as suas forças. E, ironia suprema, o Arsenal, dirigido nesse tempo da forma convencional no ambiente de futebol (isto é, gastando como se não houvesse amanhã), acabou tendo um desempenho financeiro melhor que o Tottenham.
O episódio do Tottenham é o exemplo mais luminoso de uma estatística que prova que a correlação entre gestão financeira adequada e conquistas desportivas é, infelizmente, baixa. A razão provável é que o equilíbrio de forças entre os competidores simplesmente não é leal. Cada Alan Sugar que ganhou seus bilhões em uma indústria de alta competição precisa lidar com múltiplos Roman Abramovich, o russo 10 vezes mais rico que ele e que chegou lá subornando autoridades para assumir as petroleiras do antigo estado soviético e ainda fugiu levando bilhões de rublos de impostos sonegados.
Há anos que o paradigma do Tottenham não me sai da cabeça e mais recentemente ele me assombra como um pesadelo: será que vamos fracassar depois de tanto suor?
Nessa série de artigos que tenho escrito aqui para o MUNDO RUBRO NEGRO venho procurando insistir em um ponto: a condição estrutural do Flamengo é muito mais frágil do que imagina nossa torcida.
Há uma clara assimetria de informações entre o que a torcida acha que somos (e que fomos!) e aquilo que realmente temos capacidade de ser.
Recentemente meu colega aqui do MRN, Adriano Melo, escreveu em seus “Alfarrábios” que nas últimas 23 edições do Brasileiro (incluindo a atual) o Flamengo lutou para não cair em 12, sendo que em 6 delas com alto risco, escapando no detalhe. E, como todo sabemos, só se sagrou campeão 1 única vez.
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Vou acrescentar uma informação chocante e raramente lembrada. Corinthians, Palmeiras, São Paulo, Ponte Preta, Cruzeiro, Atlético-MG, Atlético PR, Paraná, Figueirense, Internacional, Grêmio e Juventude têm mais vitórias do que derrotas nos confrontos conosco. Empatamos com Coritiba e Avaí. Superamos, até com boa margem, América-MG, Criciúma e Chapecoense. Faltou alguém? Sim, o Santos. Temos 24 vitórias sobre eles e 23 derrotas. É o único time realmente importante do Sul/Sudeste que contra quem conquistamos uma mínima supremacia.
Desde que o Flamengo ganhou seu título em 2009 de forma improvável, tivemos o Corinthians campeão 3 vezes, o Fluminense e o Cruzeiro 2 vezes, o Palmeiras 1 vez. Os 2 paulistas e o tricolor carioca conquistaram seus títulos na base de incentivos financeiros inalcançáveis para nós: uma cooperativa que foi à falência para patrocinar os delírios de seu dirigente, um estádio novinho em folha erguido com empréstimos oficiais até hoje não cobrados e milionários com dinheiro de origem não muito clara competindo entre si para ver quem coloca mais dinheiro na instituição.
Mesmo o Cruzeiro, cujo milagre financeiro ainda não foi totalmente explicado, aparentemente gastou valores muito acima da sua capacidade, tendo sido a maior folha salarial do país nos anos ao redor de suas conquistas.
E mesmo antes do nosso triunfo, vivemos a era do São Paulo, então o clube mais poderoso do país.
Dá para dizer que com exceção do nosso solitário título (e, talvez, do primeiro título cruzeirense), ganhar campeonatos no Brasil possui uma forte correlação com alto poder de investimento, não necessariamente com gestão financeira adequada.
E é nesse ponto que a assimetria que antes comentei ganha corpo. Em parte por culpa da notória preguiça de quem tem a responsabilidade de informar, em parte por iniciativa da própria direção do clube, que deixou a fantasia crescer, a torcida do Flamengo passou a acreditar que nosso elenco era poderoso e que o Flamengo estava nadando em dinheiro, sendo questão de tempo que essa pujança financeira resultasse em títulos.
As fragilidades do Flamengo, entretanto, são imensas. Ao lado do Fluminense, é o único time da Série A que não tem um estádio fixo decente para mandar seus jogos (em que pese a Ilha do Urubu vir cumprindo seu papel com louvor). Não tem 6 meses que saiu do vermelho, passando enfim a ter patrimônio líquido positivo. Estreou seu Centro de Treinamento em janeiro desse ano. E depende dos recursos que consegue captar para seguir vivendo, porque não tem mecenas ou estádio de presente para mandar às favas o fair play financeiro.
O Flamengo cumpre, em 2017, uma campanha de mediana para boa quando comparada ao seu próprio histórico. Chegou à final da Copa do Brasil, está na semifinal de uma competição internacional, o que não acontecia desde 2001 (antes o Flamengo tinha conquistado 1 Libertadores e 1 Copa Mercosul, tinha sido vice 2 vezes da Supercopa Sulamericana e chegou a 2 semifinais da Libertadores, um desempenho que, em 38 anos de história, é bem modesto) e mesmo a duras penas sempre esteve ali na zona de classificação para a Libertadores do ano que vem.
Apesar disso, tem sido muito irritante assistir vários jogos do Flamengo, afinal a expectativa era de que os altos investimentos nos trouxessem resultados mais prósperos. Eu me aborreço profundamente a cada revés, especialmente diante de times que, convenhamos, deveríamos vencer com um pé nas costas (apesar da perversa estatística nos provar o contrário, são eles que normalmente ganham de nós). Mas a frustração emocional não pode servir de desculpa para sepultar a razão, menos ainda para dar vazão a um ódio militante contra tudo e contra todos.
De todas as incompreensões a que mais me intriga tem a ver com a relação direta que tentam estabelecer entre a figura do presidente do clube e os resultados imediatos. Quem me acompanha há mais tempo sabe que atuo na política do Flamengo e que mesmo prezando pela minha independência e não abrindo mão de criticar aquilo que discordo, sou formalmente um aliado do presidente, afinal fui eleito para o Conselho de Administração pela Chapa Azul.
Porém, política à parte, o presidente do Flamengo, seja ele quem for, tem um papel relativamente pequeno nos resultados de curto prazo. Cabe a um presidente gerir o clube nos seus aspectos centrais, ou seja, cuidando da arrecadação, das despesas, da escolha dos profissionais de cúpula e, sobretudo, das relações institucionais com os associados, com a torcida e com os demais stakeholders.
Logo, contratar ou demitir o treinador (ou o diretor executivo), autorizar compras ou vendas de atletas valiosos ainda são, no ambiente semiprofissional que temos hoje, algo dentro da esfera de responsabilidade de um presidente. Mas é preciso ser muito ingênuo para acreditar que o desempenho da equipe varia diretamente ao sabor das “cobranças” que um presidente possa fazer.
Quem era o presidente do Chicago Bulls nos anos 90? Duvido que alguém saiba dizer sem googlar. Provavelmente o leitor só se lembra de Michael Jordan/Scottie Pippen/Denis Rodman e do treinador Phil Jackson. Até hoje Mr. Jerry Reinsdorf é um ilustre desconhecido para quem não é muito fissurado no esporte. É assim nos grandes vencedores: não é por conta dos cartolas que os times triunfam, mas sim porque os cartolas conseguem dar às equipes campeãs a estrutura necessária às conquistas. Dali em diante, é com os atletas e a comissão técnica.
Essas reflexões são importantes porque, não tenham dúvida, se não sair dos trilhos, o bonde do Mengão ainda vai atropelar muita gente nos próximos anos, tão logo a sua dominância financeira estiver consolidada. Estará perto das primeiras posições em todas as temporadas (como, bem ou mal, já esteve na do ano passado e até nessa mesmo) e vai faturar algumas taças, a despeito do paradoxo do Tottenham que mencionei lá no início.
No entanto, como ainda estamos no início da nossa escalada, não há como menosprezar o risco de um retrocesso, ou seja, a adoção de velhas práticas em busca de resultados imediatos, que são, como sempre no futebol, incertos – aliás, é daí que decorre muito da magia do esporte – enquanto as desgraças, isso é absolutamente certo, são consequência direta da irresponsabilidade extrema.
Se serve de consolo, quero lembrar o caso do time que mais gastou dinheiro com o seu futebol em 2016. Foram R$ 300 milhões, uma média mensal de incríveis R$ 25 milhões. Apesar de ter gastado tanto, esse time ficou no meio da tabela do Brasileiro, 2 posições abaixo da zona de classificação para a Libertadores, foi eliminado nas oitavas de final da Libertadores, foi eliminado nas quartas de Final da Copa do Brasil e sequer foi campeão estadual. Ok, vocês são espertos, já sabem que clube é esse… é o Corinthians!
Estamos, mesmo, todos nós à beira de um ataque de nervos. Mas só nos resta manter a convicção de que a evolução é um processo lento, doloroso, mas recompensador. Temos muitas dificuldades para competir com rivais estruturalmente muito superiores a nós, mas estamos nos esforçando a cada dia para encurtar essa distância e tudo leva a crer que vamos conseguir.
O Flamengo que eu quero, para sempre, não vai ser freguês de quase todos os clubes de fora de sua cidade, uma página negra construída lentamente sob a nossa indiferença enquanto nos contentávamos em rir dos nossos minúsculos rivais cariocas, que afundam ano após anos e cuja mediocridade distorce a nossa percepção.
Por isso, aceite um conselho: não fique por aí postando hashtags na linha do “eu quero meu Flamengo de volta”. De tanto insistir, pode ser que ele volte mesmo – e a gente vai tomar um porre de felicidade gritando que o Obina era melhor que o Eto’o.
Walter Monteiro é advogado com MBA em Administração. Membro das Comissões de Finanças do Conselho Deliberativo e do Conselho de Administração do Clube de Regatas do Flamengo. Escreve sobre o Flamengo desde 2009, em diferentes espaços.