A gente fala muito no ÚLTIMO PASSE, mas para entender o Flamengo atual é mais importante investigar aquilo que eu gosto de chamar de PRIMEIRO PASSE — que nem precisa ser um passe e muito menos ser o primeiro, mas é como a bola sai lá de trás para iniciar uma sequência ofensiva.
Tudo começa no goleiro, mas antes de falar sobre o papel fundamental exercido por Diego Alves, é preciso falar sobre o comandante, sua história e como sua experiência em campo moldou sua visão fora dele.
Rogério Ceni foi um goleiro revolucionário — pelo menos com os pés. Todo mundo sabe, mas vale lembrar: ele marcou 131 gols na carreira, sendo 61 de falta!! Assim, inspirou uma geração de goleiros brasileiros que tentam bater faltas — algo que praticamente só existe por aqui. Mas não era apenas na bola parada que Rogério se destacava.
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Ele também era um goleiro que sabia jogar com a bola nos pés, que se mantinha calmo quando recebia um passe e saía para o jogo com eficiência, algo não tão comum na sua época — que estranhamente já parece distante! Nesse sentido, Rogério não era radical como outros sul-americanos. Higuita, Chilavert e Jorge Campos costumavam carregar a bola até o ataque, driblar de maneira arriscada e fazer peripécias.
Todos eram chamados de “loucos”, enquanto Ceni era o oposto: frio, lógico e calculista. Nesse sentido, ele se parece com outro goleiro que fez sucesso nos anos 90 e jogou até depois dos 40 anos.
Quando surgiu, Edwin van der Sar era um exemplo de goleiro tranquilo com a posse de bola e transformou a ideia dos europeus sobre o que um goleiro deveria fazer. Com o tempo, porém, Van der Sar foi se tornando menos ágil e mais conservador.
Rogério Ceni fez o caminho oposto. No fim da carreira, passou a sair mais da área, jogar mais adiantado e, inclusive, passou a distribuir chapéus.
Não faltam exemplos de goleiros que jogam MUITA bola e ajudam na saída. A transformação não foi à toa. Não é perfumaria. Em um futebol com espaços cada vez mais reduzidos, é fundamental manipular o bloco de marcação do adversário — e isso começa lá atrás.
Usar o goleiro é uma forma eficiente de gerar superioridade na saída.
Rogério Ceni entendeu isso bem antes de chegar ao Fla, depois da vigésima rodada do BR20. Nos 20 primeiros jogos do campeonato, os goleiros do Fla deram, em média, pouco menos de 15 passes por jogo.
Felipe Alves, goleiro do Fortaleza treinado por Ceni, dava quase 45 por jogo! No Fortaleza, o goleiro era usado de uma maneira muito específica.
Cerca de 19% dos passes realizados pelos goleiros do Flamengo eram longos (mais de 40 metros), com 64% de acerto nesse tipo de passe.
Mas 39% dos passes de Felipe Alves eram longos, com 77% de acerto! No time cearense, Felipe Alves era uma espécie de “quarter-back” do futebol americano, escolhendo as jogadas e fazendo lançamentos longos para onde havia espaço livre no ataque.
Inclusive, muitas vezes jogando MUITO adiantado, bem fora da área. Rogério Ceni, porém, tem uma função diferente para Diego Alves.
O goleiro não é o responsável por encontrar os espaços lá na frente. Ele começa as jogadas.
O mais importante é que os zagueiros do Flamengo não recuam simplesmente para “se livrar do problema”. Há intenção.
Diego Alves é cada vez mais acionado — nas últimas 4 partidas, deu quase 30 passes por jogo —, mas apenas 10% foram longos (com 75% de acerto), sendo que METADE dessas bolas longas aconteceram nos minutos finais contra o Palmeiras, depois do 1×0.
Há vários exemplos de jogadas que passam pelos pés do goleiro rubro-negro e é muito fácil identificar a preferência pelos passes curtos. O @joaoholanda1000, por exemplo, fez um vídeo outro dia mostrando alguns desses lances.
Acontece que uma das dificuldades do Flamengo — há alguns anos, aliás — vem do fato de que praticamente todo mundo joga fechado contra o rubro-negro.
O goleiro então é usado justamente para atrair a pressão e desorganizar o adversário e criar espaço.
E, claro, ao desorganizar o adversário, o time precisa acelerar, às vezes fatiando a marcação-pressão, às vezes com uma bola longa saltando toda a primeira onda de pressão, como foi no gol contra o Palmeiras.
E aí entra também o papel dos zagueiros. Na reta final do BR20, Ceni fez uma mudança estrutural importante: passou a fazer, na maioria dos jogos, uma saída de 3 com Arão de um lado, Filipe Luís do outro e Diego à frente.
Quando encaixa, essa saída gera um caos nos adversários.
Tanto Arão quanto Filipe Luís têm capacidade para conduzir a bola naquele “corredor interno” (entre o corredor lateral e o central), cada um pelo seu lado. Partindo sem marcação, eles forçam alguém do meio-campo a sair e isso gera uma reação em cadeia, desorganizando todo mundo.
Mas isso só funciona porque o zagueiro Rodrigo Caio e o volante-mas-hoje-zagueiro Arão têm uma qualidade de passe e uma coragem muito acima de seus companheiros de posição no Brasil.
(É importante deixar claro: essa não é uma forma de apontar o dedo para o menino João Victor, do Corinthians, que inclusive tem uma boa qualidade técnica. A ideia é comparar os tipos de comportamento “esperados” de zagueiros em outros times e no Flamengo).
O Caio Batatinha, do @footure PRO, gentilmente produziu essas imagens aqui mostrando, entre outras coisas, todos os passes progressivos dos dois zagueiros do Flamengo nos últimos quatro jogos.
Com eles, o Flamengo encontra as brechas para entrar no bloco de marcação do adversário.
Nos últimos 4 jogos, a dupla fez 84 passes para o terço final, sendo 18 para o “sexto final” do campo (já na altura da grande área). E é bom lembrar que Rodrigo Caio nem jogou na partida de ida contra o Coritiba…
Essa ideia de desorganizar para então acelerar é tão importante no futebol atual e nesse Flamengo que às vezes dá certo até quando dá errado.
Pela Copa do Brasil, o Fla perdeu a posse, mas recuperou e encontrou o Coritiba todo espaçado pela subida inicial…
No jogo da volta, algo parecido aconteceu. O Flamengo ERROU a saída de bola depois de recuperá-la e sofreu um perigo na área. É claro que isso não deve acontecer, mas acabou gerando uma chance claríssima lá na frente. E não é coincidência…
Se o time estiver preparado para atacar enquanto defende, consegue explorar contra-ataques, o que tende a ser raro para uma equipe que enfrenta adversários fechados.
Quando manipula e atrai, cria esses espaços, fazendo com que vários ataques tenham cara de contra-ataque. No fim das contas, quando o PRIMEIRO PASSE é consciente e bem executado, o ÚLTIMO PASSE fica mais fácil. Quando a bola sai limpa lá de trás, chega limpa lá na frente.
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Ali, quando o time tem espaço para acelerar, é mortal. O grande reflexo disso é a performance de Bruno Henrique, que vem crescendo muito nos últimos jogos.
Há vários fatores para isso… Os desfalques colocam nele o peso do protagonismo e o nível mais baixo dos adversários também dá chances para ele se destacar… Mas há também o comportamento do time como um todo.
Separei aqui TODOS os passes que ele recebeu na última partida. Repare que, quando o Flamengo atraiu e manipulou, ele sempre recebeu acelerando.
É justamente assim que BH pode ser mais útil. Ele não é um cara moldado para espaços curtos e nem para jogar de costas, então como o Flamengo pode aproveitá-lo se todos os adversários jogam retrancados? Atrair, manipular, desorganizar e… acelerar!
Aliás, Gabigol também é um especialista em criar, enxergar e explorar os espaços lá na frente. Não é um centroavante para brigar com os zagueiros. Se ficar cruzando bola na área, o Flamengo anula seu 9. Precisa justamente encontrar essas alternativas.
Por fim, é importante dizer que os últimos 3 jogos foram contra adversários bem mais fracos. Mesmo muito desfalcado, o Flamengo tem total condição de se impor contra Coritiba e América-MG, como fez. Hoje, contra o RB Bragantino, o teste será muito mais duro. Mesmo assim, é importante manter isso sempre em mente. Esse Flamengo é o time do primeiro passe, o time que precisa atrair para atacar.
Quando a bola volta no goleiro, em vez de ter um mini-infarto, respire fundo e lembre-se: é assim que começa o perigo lá na frente.
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